quinta-feira, maio 16, 2024

A coisa

     A coisa está complicada. Muito confusa. Hermética.

    Tenho dificuldades. Já sabia que fácil não era. Mas... tão complicada!?

    Tão complicada também não. 

    Não é justo. Não me parece que seja justo. Ainda por cima a inteligência não abunda.

    Só pode acabar mal. 

    Rezo muito. Tento inverter a ordem das coisas. A ordem que as coisas estão a tomar.

    Mas tenho a impressão de que as minhas preces caem em saco roto.

    A coisa está muito complicada. Confusa. Não me parece que haja solução.

    Era bom que houvesse solução. Que houvesse alguém capaz de compreender.

    Mas temo que essa pessoa não exista ou que não tenha nascido ainda. Pode nascer!

    Não gosto quando tenho sentimentos negativos mas odeio esta coisa. Essa é a verdade.

    Odeio esta coisa. Preferia que não existisse.

terça-feira, maio 14, 2024

Condição infantil

     Enquanto indivíduos podemos crescer, tornar-nos adultos. Ser adulto é algo muito valorizado socialmente pois implica saber-o-que-se-quer. Pergunto-me se saber-o-que-se-quer é algo indubitavelmente saudável e contribui, de facto, para a nossa felicidade ou mesmo para a nossa sanidade mental. Hitler, por exemplo, parecia saber bem o que queria. Era um adulto?

    A pergunta que esta manhã se me formou na cabeça foi: pode uma sociedade crescer? Tornar-se adulta?

    Se, como acontece com os indivíduos, uma sociedade precisa de saber-o-que-quer, então o problema é bastante complicado (para não dizer que é impossível de resolver). Não sei bem o que acontece na China, na Índia ou no Japão, mas tenho a impressão de que a "sociedade ocidental" anda um bocado perdida, não sabe ao certo o que quer e é muito infantil. É uma sociedade com um comportamento errático e que parece desejar ter tudo.

    Desejar tudo acaba por provocar uma desorientação permanente e parece conduzir-nos a uma situação final em que não teremos nada. Talvez isso seja um pormenor, talvez não-saber-o-que-se-quer e querer tudo nos seja indiferente pois o previsível descalabro final acabará por acontecer lá mais para diante. 

    Entretanto podemos ir usufruindo de muita coisinha boa, podemos viver este estado social infantil durante mais uma década ou duas imaginando que o bem-estar é inesgotável e que, tal como a economia e o universo, irá continuar a crescer infinitamente. Até ao dia em que deixar de acontecer.

domingo, maio 05, 2024

Paul Auster (1947-2024)


    Há uma certa diferença entre usufruir da leitura e compreender a obra lida no contexto do universo criativo do autor. 

    Mais ainda, há uma certa diferença entre ler vários livros de um autor e conseguir locazilá-lo na imensidão do cosmos da criação literária. Enfim, Paul Auster ofereceu-me excelentes momentos, outros nem por isso. 

    A qualidade artística é sempre intermitente, raramente ou nunca é constante. A genialidade é meramente ocasional.


segunda-feira, abril 29, 2024

Uma voz interior

    Acordara com a cabeça vazia mas não se recordava de a ter esvaziado.. Talvez as ideias fossem lixo, talvez as memórias não estivessem em bom estado de conservação. Fosse por que razão fosse, não sentia nada dentro da cabeça. Bom, na verdade sentia o cérebro dentro do crânio, uma esponja encharcada em água suja a repousar no fundo de um balde de plástico.

    De súbito foi assaltado pela ideia de que seria a sua alma a estar vazia, que não havia nada de errado com o cérebro (a esponja desapareceu de imediato mas o balde continuou firme no seu lugar). Sim, isso fazia sentido, o cérebro não poderia nunca estar completamente vazio pois ele estava a pensar! Era a alma! A alma... não, não podia ser a alma a causar-lhe aquele vago incómodo pois a alma é uma coisa que não existe de facto. Não tem forma, nem peso... mas, talvez, o que não existe possa interferir com aquilo que somos e vivemos, pensou. Uma pequena nuvem (de fumo, de poeria?) subiu discretamente desde o fundo do balde.

    Um café! A solução para aquela inconstância matinal seria o consumo de uma boa dose de cafeína. Dirigiu-se à pastelaria da esquina e pediu a bebida milagrosa que ingeriu avidamente mal a chávena pousou no balcão envidraçado. Nada. Nem o balde, sequer. Talvez o problema não residisse no cérebro, nem na alma, talvez o problema dele fosse a vida. A própria vida!

    Ai, esta ideia caiu-lhe dentro da cabeça como uma saraivada, como se Deus o corresse à pedrada para fora do Seu bairro (Põe-te a andar, palhaço! Não te quero ver por aqui, desaparece!) Esta foi dura. Segurou-se no balcão fincando os dedos da mão direita enquanto a esquerda lhe fugiu para trás das costas, tacteando o espaço sem encontrar apoio. No lugar onde estivera o balde era agora um abismo sem fundo aparente. O mar a bater lá em baixo, no escuro absoluto. Talvez inferno?

    Foi então que ouviu a voz vinda lá do fundo do seu ser - Então, pá? Não posso passar uma noite fora que ficas logo passadinho! Põe-te direito e deixa-te de fitas. Vamos, vamos embora, vamos à vida. 

    "Bom dia" disse ele "porque demoraste tanto? Não voltes a fazer isto. Por favor..." 

    Nem balde, nem esponja, nem abismo, muito menos inferno. 

segunda-feira, abril 22, 2024

O canto da sereia

     O vento fazia das árvores uma matilha de cães saídos da água que tentassem secar-se. Mais atrás, as fachadas dos prédios entristeciam perante a chegada do sol; vidraças sujas, papéis e jornais colados por dentro com pedaços de fita-cola, reclames de cores esbatidas, queimados, caixas de ar condicionado trepando paredes até onde a vista alcançava. Percebia-se a habitação do espaço, sentia-se tristeza.

    Apesar de tudo flores amarelas refulgiam como sóis, esperançosos apontamentos de cor.

    Os carros passavam, anónimos, mecânicos, como se fossem fabricados pela rua, como se a cidade tivesse a função de os produzir ininterruptamente. Um relógio mudo marcava segundos, minutos, horas, também aquele dia haveria de tornar-se um número anónimo riscado no calendário. Estranhamente nada daquilo lhe provocava qualquer tipo de sensação particular.

    Uma sereia cantou e nem assim as coisas se alteraram.

sábado, abril 20, 2024

Esperança

     Tinha a incómoda sensação de estar a ser lentamente mastigado por um bicho. Um bicho com problemas estomacais, ainda por cima. Tinha a incómoda sensação de ter sido entregue à bicharada; ele e os restantes companheiros de infortúnio, os deserdados da sorte ou da vida ou lá o que eram.

    Sentia que ninguém os poderia defender ou mesmo livrar daquela situação desesperante. O destino fora cruel. Nada iria alterar o rumo dos acontecimentos. Até que... 

    ... até que irrompeu naquele recanto escuro, onde ele e os companheiros eram lentamente mastigados, outro bicho. Maior, mais feroz, mais desvairado. Tão assustador, que o dos problemas estomacais vomitou tudo o que havia mastigado e ingerido e virando costas o deixou, a ele e aos seus pobres companheiros de infortúnio, ali abandonados: sujos, malcheirosos, vomitados, completamente desorientados.

    O monstro fugira. Chegou um novo monstro.

segunda-feira, abril 15, 2024

O Zé e o Midas

     Muitos remoques caem sobre o actual governo da República por ter prometido aquilo que, afinal, tinha sido oferecido pelo governo anterior. O espantoso choque fiscal anunciado por Montenegro na campanha eleitoral era, afinal, uma duvidosa habilidade retórica. Este canto de sereia terá levado muitos eleitores a depositar a cruz do seu voto na aliança de direita, permitindo-lhe desse modo a ligeira vantagem que lhe conferiu a vitória nas urnas.

    Ai Jesus, que Montenegro mentiu! Que desfaçatez, Montenegro enganou, ludibriou, foi habilidoso, quase maquiavélico... agitam-se os braços, rasgam-se as vestes, arrepelam-se cabelos em público; da esquerda à direita parlamentar todos apupam o primeiro-ministro. Como de costume, o eleitor, o Zé, o grande povo português, é poupado à reprimenda. 

    Quem orienta o voto tendo por base promessas meramente económicas recebe de troco, exactamente, aquilo que merece. Quem acredita que "tempo é dinheiro" e sabe que "não há almoços grátis", quem não é de direita nem de esquerda, é pragmático ao ponto de actuar sem conhecer, quem, enfim, anda neste mundo por interesse, não tem grande moral para se queixar quando as coisas não correspondem ao seu sonho dourado.

    Se analisarem bem o mito, o Rei Midas não passava de um imbecil ignorante.