sábado, novembro 11, 2017

Este nosso Ubu


Adaptar o Rei Ubu para o Teatro na Gandaia foi a coisinha mais apaixonante que me foi permitida experimentar desde que ando a fazer pelo teatro. A princípio senti-me um pouco (muito) intimidado; era o respeitinho a fazer-me tremer as manitas sobre o teclado, o não querer defraudar o autor, nem a tradição, muito menos a grandeza da coisa, enfim, estava um tanto ou quanto acagaçado. Li versões que fui encontrando, observei longamente milhentas imagens das milhentas encenações que pululam nas páginas da Net, nada me descansava, antes pelo contrário. Quanto mais penetrava o espírito da coisa mais me parecia estar com o rabo à mostra. Sentia uma espécie de frio nas nalgas, o nariz enregelado mas… eu seja corno, havia que meter mãos à obra e deixar pruridos merdosos no fundo da gaveta: ou bem que somos homens ou então somos ratos ou outra merda qualquer, gâmbias de Deus!
Acredito piamente que a arte é uma massa informe (uma coisa plástica) que se encontra eternamente em suspensão à espera que alguém lhe deite a unha e faça dela uma coisa nova. Uma forma artística depende do tempo e do lugar em que vê a luz, não há vacas sagradas. Traduzir um texto é sempre reescrevê-lo. Perante o Ubu não havia que temer. Afinal de contas trata-se de um texto tão desopilante que se pode fazer dele quase tudo o que se queira desde que se mantenha fidelidade absoluta à brutalidade daquele gajo hediondo que tem como objectivo principal viver acima das suas possibilidades à custa do sofrimento alheio. Uma personagem clássica, aquele Ubu.
Como referências tinha o exemplo da banda que dá pelo nome de Pére Ubu e o dos punks de um modo geral, admirava de toda a minha alma os dadaístas nas suas múltiplas e corrosivas formas de expressão artística (ah, o grande Dada Max!), sentia-me capaz de fazer alguma coisa concreta e consequente com aquela massa plástica que o texto de Jarry colocava à minha frente, só me faltava o atrevimento que, confesso, não será o meu ponto mais forte nem mais óbvio. Lá me convenci a meter mãos à obra; primeiro titubeante, às apalpadelas, depois, à medida que ia avançando, cada vez mais convicto e mais feliz por me permitir a liberdade de comungar daquela intemporalidade maravilhosa que ia descobrindo a cada passo. Quando terminei percebi que participara na gestação de uma coisa selvagem.
Entreguei o texto à Ana Nave confiando na sua capacidade de dar vida ao texto mais abstruso, a sua extraordinária capacidade de fazer o teatro acontecer. Agora havia que aguardar.
Passaram meses de ensaios. Domingos e segundas-feiras. O grupo de actores foi-se ajustando, tal como o texto. A tal massa informe a ganhar contornos visíveis. A Rafaela Mapril tornou reais as figuras das personagens com esplendorosos figurinos, o Zé Rui iria ser o responsável por esculpir o espaço cénico a golpes de luz, tudo se conjugava daquela forma próxima da magia que é própria do Teatro.
Quando assisti ao primeiro ensaio geral fiquei embevecido. Apesar de todas as irregularidades e arestas por limar a coisa tinha a força que imaginara: grotesca, excessiva, brutal, potencialmente repelente mas plena de força, carregada de um vigor e de uma boçalidade capazes de incomodar os espíritos sensíveis, tal qual imaginara que poderia ser. Acredito que o resultado deste trabalho apaixonado não envergonharia o próprio Jarry, passe a imodéstia.
No dia da estreia compreendi que das duas uma: o espectador iria amar aquele objecto teatral ou odiá-lo, não me parece que a magnífica representação de todos os actores que estiveram em palco possa ter proporcionado sentimentos próximos da indiferença aos que assistiram, sentados na plateia do António Assunção.
Não há agradecimentos a fazer. O Rei Ubu não se agradece, faz-se!

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