sábado, dezembro 31, 2016

Proverbial

Se um gajo der uma cana a um outro, que não saiba pescar, melhor será que lhe não vire as costas.

quinta-feira, dezembro 29, 2016

Energias

Somos nós meras carroças transportando um cérebro que lamenta não ter pernas para se movimentar livremente pelo mundo? Que raio de coisa é o corpo? Tão frágil, tão frágil, o corpo é uma coisa tão frágil!

Será o cérebro mera fonte de alimento para alguma coisa que não se deixa entender que não se consegue abarcar, uma coisa inexplicável, cósmica, uma coisa divina? A nossa vida como fonte de energia para um ser (à falta de melhor designação) impossível de compreender, um ser eternamente ligado às nossas mentes por invisíveis sensores. Guloso, a crescer, a ficar mais forte a cada momento...

Criará cada criatura cósmica o seu próprio alimento? Seremos nós um docinho? Teremos um sabor de merda?

segunda-feira, dezembro 26, 2016

Crimes e outras coisas

Esta manhã li dois contos de Patricia Higsmith de uma colectânea com título genérico igual ao da primeira historinha: O Álibi Perfeito. Historinhas que me parecem geniais na invenção de situações surpreendentes mas com um problema terrível na edição que estive a ler, a tradução é escabrosa. Dizer que é péssima é fazer um favor ao autor de semelhante assassinato. A coisa é tão mal traduzida que a tradução é o mais hediondo e repugnante de todos os crimes contidos no livrinho.

Reparei que os contos seguintes foram traduzidos por outras pessoas mas tive de sair e o finíssimo volume ficou guardado para outra ocasião. Tivesse a tradução outra qualidade e decerto não deixaria o livro a descansar até voltar a pegar-lhe, o que não deverá acontecer tão cedo.

Ao fim da tarde fui surpreendido com a oferta da mais recente tradução da Bíblia, volume I, O Novo Testamento, Os Quatro Evangelhos, obra de Frederico Lourenço, considerada uma coisa digna de ser lida. O trabalho de tradução tem merecido os mais elevados encómios. Tenho que ler.

A tradução é fundamental. Entregar boas obras nas mãos de maus tradutores deveria ser considerado crime.

terça-feira, dezembro 20, 2016

Indolência

 3 Palhaços (e uma galinha) tinta da China sobre papel craft; Dezembro de 2106



Tenho a cabeça muito vazia. Escrevo estas palavras sem saber bem porquê. Talvez sinta necessidade de fazer qualquer coisa por muito inútil que possa ser; talvez responda a um reflexo intelectual provocado pela escassez de posts ao longo deste mês natalício. Não sei. Na verdade não sei porque insisto em martelar gentilmente o teclado. Continuo.


Para ser sincero apetece-me desenhar. Mas o frio não convida uma subida ao sótão e não tenho condições para produzir os desenhos nas dimensões mais generosas que tenho vindo a exercitar nos últimos dias. Por isso fico aqui, sentado, a teclar sem destino nem sentido. Continuo...

Gostava de ser capaz de escrever outras coisas, dar forma a algumas ideias que me têm visitado com alguma insistência. Visitas de cortesia como só as ideias parecidas com sonhos podem fazer. Mas não sinto coragem, talvez não me apeteça, talvez esteja receoso de avançar em direcção a algum lugar que possa não ser o que imagino.

Fico assim.

domingo, dezembro 18, 2016

Contradição

Olhando os polícias que esbracejam o trânsito num Cais do Sodré esventrado por obras eternas, percebo perfeitamente que o Caos pode ser ordenado mas não é por isso que deixa de ser o Caos.

(avanço na cidade)

Há dias assim, dias em que gosto sinceramente de estar vivo. São dias que me parecem iguais aos outros, na verdade não percebo porque gosto mais de estar vivo nestes que naqueles. Se calhar gosto de viver, mais nada!

(a cidade brilha sob o sol)

Ele há dias que mais parecem noites e noites que trazem agarrada a fundura negra de um poço com pêndulo. Nem mesmo a luz espanta os monstros dos recantos desses dias, nem a escuridão das negras sombras os conforta. É uma angústia, uma agitação, como se fosse uma morte.

segunda-feira, novembro 28, 2016

Um rabisco

Tanta gente a tentar perceber o que aconteceu, como foi possível? Quem votou em Trump, quais as razões desses votos?

Cada cabeça sua sentença (ou, como se diz neste blogue: 100 cabeças, 1000 sentenças) as opiniões dividem-se. Ora disparam em lucubrações fantásticas, ora serpenteiam em complexas associações de ideias mas, no fim das contas, ninguém pode afirmar que Trump foi eleito por estes ou por aqueles que o terão feito por isto ou por aquilo.

E se, lá no fundo, a razão principal que levou à eleição do homem dos cabelos complexos for tão simples quanto ele ser a imagem mais límpida de uma certa estupidez humana? E se ele foi eleito por mero reflexo, um gesto geral e impensado, executado por uma multidão de votantes pouco dados a reflectir sobre questões éticas ou morais?

Talvez o Trump-presidente seja apenas isso: um rabisco desorientado feito pela multidão numa página da História contemporânea. Seja lá isso o que for... quem sabe?

Nota: o 100 Cabeças completa hoje 11 anos de existência.

terça-feira, novembro 22, 2016

Confissão

Eu gostava de ser bom como o Papa Francisco, gostava de ter aquela compaixão couraçada que ele mostra quando aconchega os fracos e os oprimidos e estica as orelhas aos exploradores e aos filhos da puta.

Eu gostava de ter a missão de espalhar a fé na justiça e na amizade entre os povos como vai fazendo António Guterres com aquele aspecto de suportar às costas um peso imenso sem nunca perder a coragem.

Oh, como gostava de sentir a inspiração das grandes causas, a força da esperança que outros depositassem em mim!

Mas não, sou um gajo com maus fígados. Dou por mim a desprezar certas pessoas que, se calhar, até nem merecem desprezo, a desejar que certos figurões se fodam forte e feio, não tenho a auréola de santo que gostaria de ter.

Enfim, sou obrigado a viver dentro de mim próprio, a suportar os pensamentos desviantes que me sopram aos ouvidos canções bandidas. É assim que sou. E, verdade, verdadinha, até que nem desgosto.

sábado, novembro 19, 2016

Manhã de Inverno

Encosto as pernas no Sol que a janela da cozinha deixa entrar sem grande cerimónia. O frio do Inverno chegou faz apenas dois dias (ou três). Veio atrasado mas é como se nunca tivesse ido embora.

O Frio, quando chega, é sempre o mesmo. É um viajante. Quando regressa poderá vir mais ou menos cansado mas o seu toque permanece vigoroso, inconfundível. Daí que eu, que nunca me detenho em grandes contactos com o Sol de Verão, me deixe estar assim, encostado a este Sol, sentado no mocho da cozinha, depois de um largo café, queijo fresco, doce alentejano de tomate e framboesa, tostas quase sem sal e umas quantas páginas de O Delfim.

Grande Cardoso Pires, grande Cardoso Pires...

terça-feira, novembro 15, 2016

Material e criatividade

As mulheres são, de facto, adoráveis. Olho-as e vejo a perfeição.

Da criação de Adão para a de Eva Deus melhorou muito. Fica provado que, por vezes, a matéria-prima é decisiva para a qualidade final do trabalho realizado.

Não sei se Deus fez alguma experiência anterior mas uma costela parece ser material mais indicado do que um punhado de terra quando se trata de criar um ser vivo.

Nesta cena estiveste bem, Deus, foste um bacano.

sexta-feira, novembro 11, 2016

So long Leonard


Esta noite recebi a notícia da morte de Leonard Cohen. Até um dia, Leonard, talvez te veja outra vez. Ou talvez não.

Reparo agora que os meus ídolos musicais estão, cada vez mais, enterrados na mesma cova da minha memória. Strummer, Reed, Bowie, agora Cohen, Morrison já morreu faz muito, muito tempo. Palma, meu amigo, continua bem vivo e dou graças a Deus, pelo menos por isso.

A estante onde vou amontoando os meus CD's cada vez mais se parece com um cemitério. Hoje, quando falei nisso à Ana ela perguntou-me se eu sabia o que poderia significar tal coisa? Eu sei o que ela queria sugerir, que estamos a envelhecer, mas respondi: sim, sei o que significa, significa que toda a gente morre, mesmo os imortais, qualquer coisa assim.

Resposta parva, provocada por uma mistura de desencanto e alguma raiva temperadas por um pouquinho de tristeza e desespero. Já só poderei ouvir o que eles fizeram, já não poderei esperar o que eles vão fazer.

Quando falecem estes seres humanos ficamos um pouco mais sozinhos, um pouco mais abandonados aos nossos sonhos. Já não poderemos ser estimulados pelas suas visões magníficas para vermos o mundo melhor iluminado. Resta-nos a memória, a revisita.

Até um dia Leonard, meu magnífico companheiro.

quinta-feira, novembro 10, 2016

Perguntas, perguntas…


É o presidente Trump um retrato do mundo actual? É ele o espelho mágico no qual nos olhamos e a quem perguntamos se há alguém mais democrata do que nós? Nós… nós… mas quem somos nós, aqueles por quem o Senhor Director fala no seu editorial de 10 de Novembro, “Este território desconhecido”? Somos os que estão surpreendidos com a vitória do Donald? Os que vivem preocupados com os movimentos populistas de pendor totalitário que medram um pouco por toda a União Europeia? O que nos une, o que nos torna um todo?

Tal como nos comics americanos, por cada super-herói há um super-vilão. Se “nós” existimos “eles” também estão por aí e, de momento, são “eles” quem está a ganhar. Temo que o problema resida precisamente na possibilidade que “nós” não existamos, que “nós” sejamos uma personagem ficcional e “eles”, pelo contrário, sejam reais. Temo que “eles” saibam o que (não) querem enquanto “nós” queremos coisas diferentes uns dos outros. “Eles” têm inimigos definidos e unem-se, “nós” não temos como nos unir pois não identificámos ainda o inimigo, estamos divididos. “Nós” acreditávamos que personagens como Trump, Farage e Le Pen só poderiam crescer noutro tipo de contexto sociopolítico. Erro crasso, percebemos agora. Seremos,"nós" e "eles", a mesma coisa, a mesma gente?

Olhando para os resultados das duas votações (a do Brexit e a eleição do Donald) que obrigam a reflectir sobre que mundo é este, verificamos que uma e outra foram razoavelmente renhidas, que há uma tendência clara para uma divisão em duas partes que se equivalem. Estará o Ocidente a partir-se ao meio, a abrir uma brecha através da qual se esvaziará irrevogavelmente?
Se Trump for o tal espelho mágico decerto não tardará a dar-nos respostas.

Carta enviada ao Director do jornal Público

domingo, novembro 06, 2016

Monstro

Ser mau é o resultado de um amontoado de circunstâncias que se equilibram umas sobre as outras como aqueles chinezinhos incríveis que penso lembrar-me de ter visto um dia, num palco qualquer, algures no mundo. As coisas todas, umas em cima das outras, aquele momento inacreditável, tudo assim, como se pode imaginar: e a maldade irrompe, inundando o momento que vivemos!

O Ser mau é um veículo inesperado de um conjunto de forças cósmicas maiores do que a sua capacidade de entendimento. O Ser mau assume a sua inevitável condição de fantoche dos deuses e ali está, disponível para horrorizar os outros, os comuns mortais, incapazes de entenderem que raio de força é aquela que faz de uma pessoa normal a monstruosidade abjecta que ali se ergue, sentada no sofá, encostada à ombreira da porta da cozinha, com o dedo a premir a ponta do nariz e os lábios rasgados num sorriso assustador? As interrogações tropeçam nas certezas; que monstro é aquele dentro de nossa casa, dentro do nosso peito, dentro da nossa cabeça!?

Aquele monstro sou eu, és tu, o inferno somos nós.

sábado, novembro 05, 2016

Feitiço

Havia muito tempo que o relógio da estação só marcava a hora certa duas vezes em cada dia. Quando reparei nesse pormenor apercebi-me que a minha vida é muito feita de esquecimentos. Talvez seja isso que me permite o espaço necessário à imaginação.

Talvez a imaginação necessite desses esquecimentos passageiros para que possamos encontrar-nos.

Tal como o bicho perseguido agora sai da toca, atraído pelos raios dourados do sol, esquecido do perigo que ali o enfiara, tão fundo na escuridão e no medo, também a imaginação sai da minha cabeça em busca do teu olhar.

Vivo enfeitiçado pela imaginação.

sexta-feira, novembro 04, 2016

Possibilidade de beleza

Acordas todas as manhãs para continuares a viver a tua vida no seguimento do sonho que sonhaste. Continuas dentro do teu corpo, cheiras-te, sentes-te, és tu! O mundo desfila perante os teus olhos, ajeita-se ao teu ser, és humano outra vez. O dia vem aí e tu irás com ele.

Não há nada de extraordinário. São as coisas a serem aquilo que são. Não tens noção, não sabes, não te apercebes. Vives a tua vida e, inevitavelmente, vives também um pouco as vidas de outras pessoas. Tudo se mistura, talvez isto seja belo.


segunda-feira, outubro 31, 2016

Santa estupidez!

Olhando de relance para os livros de História fico pensando: quantas vezes os que acreditaram agir em nome de Deus acabaram abrindo as portas de suas almas ao Diabo? Quantas vezes os que têm fé na própria santidade convidam o Vampiro a entrar nas suas casas. Ovelhas mansas são perfeitas para ferrar dentes aguçados.

A força da religião é proporcional à debilidade mental. A crendice alimenta-se da estupidez como besouro se alimenta de merda.

Levámos tantos séculos a separar o Estado da Igreja, a construir a Democracia à custa de tantos sacrifícios e agora assistimos, incrédulos, ao cristianismo na sua pior versão, a versão exploradora, assassina da Humanidade, parasita da miséria, assistimos à chegada do fundamentalismo cristão aos lugares do poder Democrático no Brasil.

O resultado disto só pode ser a morte da Democracia. Fundamentalismo religioso e Democracia são como a água e o azeite, não se misturam por mais que o tentemos fazer. As igrejas evangélicas são como serpentes, demónios com asas feitas com penas de galinha, a fingir que são anjos.

Atenção que a coisa medra em Portugal. Eles estão aí, fingindo que não existem, passando despercebidos, a martelar nos bairros pobres, a arrebanhar os analfabetos sociais, fazendo o trabalho do Diabo com frieza e método. A IURD não dorme. A Besta está activa.

Santa estupidez!

sábado, outubro 29, 2016

Apetite por papel

Pode a designada "arte urbana" ("street art" soa mais fino) ir parar dentro de uma galeria ou de um museu? Perderá fulgor a obra do activista urbano quando exposta num espaço domesticado pelo comércio? 

Bom, se um retábulo de Vasco Fernandes (Grão Vasco para os amigos) pode ser reconstituído no interior de um museu com o nome do mestre, perdendo toda a envolvência mística do local para o qual foi criado e onde foi exposto originalmente, não vislumbro qual o problema de enfiar arte de rua dentro de um edifício. Marcel Duchamp fez-nos entender que estas coisas são muito mais terra-a-terra do que gostaríamos de acreditar. 

A transcendência do objecto artístico está muito perdida nos labirintos das nossas alminhas. Haja saúde que o resto interessa pouco (como diz a minha vizinha do rés-do-chão).

quarta-feira, outubro 26, 2016

Antes pelo contrário



Alemães, austríacos, belgas (valões e flamengos), búlgaros, cipriotas, croatas, dinamarqueses, eslovacos, eslovenos, estónios, espanhóis, finlandeses, franceses, gregos, húngaros, irlandeses, italianos, letões, lituanos, luxemburgueses, malteses, holandeses, polacos, portugueses (minhotos, beirões, ribatejanos, alentejanos e algarvios), ingleses (de malas aviadas), escoceses e irlandeses do norte (a hesitarem no aviamento das respectivas malas), checos, romenos e suecos. Tantos povos, tanta gente, uma só União, a Europeia. 

A pergunta que me dança na caverna craniana é: o que une esta União? É a Cultura? A religião? É uma ideologia política? Algum Herói, algum sonho, um ideal que seja? Não. Não me parece que haja outra coisa em comum além da deusa Economia. 

Mas, tal como o Cristianismo tem diferentes interpretações que se materializam em Igrejas particulares que apontam diferentes caminhos para a redenção das almas, também a Economia divinizada suscita debates acalorados e diferentes vias para a redenção dos orçamentos dos estados. A confusão instala-se, a coesão é uma espécie de batata que obedece a múltiplas lógicas voláteis. Pautar a construção europeia por princípios económicos equivale a desfazê-la em pedacinhos peçonhentos. 

A Economia é uma divindade prostituta, pode proporcionar prazeres momentâneos, êxtases magníficos mas, no fim do dia, exige o pagamento devido sem oferecer qualquer tipo de afecto ao pagador. 

Somos um cadáver andante, um zombie sociopolítico, uma coisa votada ao esquecimento. Sem solidariedade esta coisa de que fazemos parte não faz sentido. Sem cultura Democrática somos uma bosta. E, como bosta que somos, havemos de ir esgoto abaixo e, connosco, toda a magnífica utopia social-democrata será despejada no Mar Mediterrâneo. 

Sinto algum pesar por fazer parte deste epílogo histórico mas, por outro lado, não me pesa o coração. A tristeza que me assalta é fruto de não conseguir cumprir aquele que acredito ser o sentido da vida: deixar para as gerações futuras um mundo melhor do que aquele que encontrámos. Antes pelo contrário.

segunda-feira, outubro 24, 2016

Bestial

É com indisfarçável incómodo que vejo a Besta crescer à luz do dia. É um bicho imundo, feio, malcheiroso, que consegue iludir-nos ao ponto de lhe irmos dar de comer à boca. Sem nojo, sem receio. A Besta é hipnótica.

Imagens da Besta são sempre coisas complexas, nem todos (seremos poucos?) conseguem compreender a essência da coisa, a estrutura que sustenta o animal. Vemos algo que lá não está mas, para percebermos o logro, precisamos de uns óculos especiais que se colocam no quiasma óptico e são feitos de coisas impalpáveis: ideais, sonhos, conceitos... a Besta é metamórfica.

A Besta pode disfarçar-se de gatinho, de coelhinho, de velhinho, de menina ou menino, pode assumir a forma de uma coisinha fôfa para melhor nos atrair e depois nos devorar. A verdade é que muitos de nós nem se apercebem que estão a ser mastigados quando a Besta se prepara para os engolir e transformar em merda. A Besta tem um aspecto inofensivo.

sexta-feira, outubro 21, 2016

Momentito

Encontrar pessoas com um universo de referências culturais semelhante ao nosso pode proporcionar momentos de grande desembaraço intelectual. Isso e uma garrafa de bom vinho.

quinta-feira, outubro 20, 2016

Premonição

Um dia serei apenas um nome (mais um nome) escrito em qualquer lado e, como todas as coisas escritas, estarei sujeito ao apagamento.

segunda-feira, outubro 17, 2016

E no entanto...

Não sei quantas vezes já escrevi sobre o que vou escrever, decerto não será a primeira vez nem, seguramente, será a última. Ou estarei confuso?

Sinto-me cansado. É verdade que esta noite dormi poucas horas, poderá esse facto contribuir para esta sensação de embrutecimento que me vai inundando o cérebro. É uma inundação lenta, mais como um charco de águas fedorentas que sobe de nível porque alguém lhe vai mijando dentro do que como um tsunami provocado pelo batimento inexorável de duas placas tectónicas.

Os dias passam mas parecem lentos. O mundo vai-se esboroando como um castelo de areia que seca com o passar dos dias, longe da rebentação das ondas, um castelo que é derrotado pelo calor e pela gravidade implacável e vai caindo, aos poucos, para dentro de si próprio.

O mais estranho é que eu penso que vivemos no melhor dos mundos que até hoje este planeta selvagem conheceu. Estou convicto de que, ao longo da História, nunca a riqueza foi tão bem distribuída nem a miséria tão eficazmente combatida pela nossa lamentável espécie. E, no entanto...

sexta-feira, outubro 14, 2016

Viva a arte!


O prémio Nobel da literatura para Bob Dylan pôs o pessoal a botar a boca no trombone e a barulheira é uma confusão. Que sim, que não, um ou outro que talvez. As opiniões, como dizia Herman José, são como as vaginas: cada um tem a sua.

Neste caso não vou mostrar a minha.

Escrevo este texto porque a discussão fez-me lembrar uma questão que muito me embaraçou quando era aluno de belas-artes. Um belo dia, mais belo que a minha arte, o professor de desenho disse-me, assim, sem aviso, que aquilo que eu lhe mostrava para avaliação das minhas capacidades não era desenho.

Gelei.

Se não era desenho o que era aquilo afinal? Pior, onde acabava o desenho e começava aquilo ou, pior ainda, onde acabava aquilo e começava o desenho? Jovem que era, fiquei confuso e levei porrada de criar bicho, não tinha argumentos nem sequer era admitida discussão. O professor é que sabia, ponto muito final.

Ainda hoje, várias décadas volvidas, penso naquela situação e continuo sem perceber muito bem quais são os limites do desenho. Onde fica a fronteira que circunda a sabedoria da arte?

Muitos dos que desatinam com o prémio atribuído a Dylan vertem algum fel afirmando que ele não faz literatura e desprezam a Academia Sueca por ter ousado misturar belos alhos com esbodegados bugalhos. Lá terão as suas vaginas. Pessoalmente, confesso, estou-me bem a cagar.

Viva a arte!

sábado, outubro 08, 2016

Um homem triste

Tenho alguma simpatia para com António Guterres. Sempre me pareceu um gajo fixe metido em sarilhos muito maiores do que aqueles que estava preparado para enfrentar. Agora mais do que nunca.

Será necessário observar que Guterres não é santo embora possa parecê-lo, tais os panegíricos com que o têm presenteado nos últimos dias. É um homem vulgar com alguma predisposição para o sofrimento. Daí que seja escolhido para liderar causas perdidas.

A sua carreira política em Portugal não foi isenta de erros, alguns deles graves (como o de trazer José Sócrates para a ribalta) mas custa a crer que tenha errado em proveito próprio como o fazem tantos outros candidatos à canonização pública.

Enfim, agora que é secretário-geral da ONU resta desejar-lhe alguma felicidade. O homem parece sempre infeliz. Era tão bom que o mundo lhe pusesse um sorrisinho nos lábios...

quarta-feira, outubro 05, 2016

Releitor

Ontem concluí a releitura de Cem Anos de Solidão.

Quando fechei o livro tive a estranha sensação de que aquele livro nunca acaba. Podemos fechá-lo mas ele está sempre aberto dentro da nossa cabeça. A narrativa é um imenso e magnífico círculo, um estanho círculo limitado por uma circunferência repleta de centros.

Seja qual for o ponto onde colocamos o bico do compasso, quando o rodamos, o desenho da circunferência coincide uma e outra vez com o traçado anterior, contrariando todas as leis da geometria que tanto nos custaram a aprender e tão pouco nos custaram a aceitar, uma vez compreendidas.

Essa magnífica sensação encorajou-me a deixar de ser leitor, por uns tempos, para me transformar em releitor.

Fui à estante namorar as lombadas dos livros. Ali estavam, alinhadas, inúmeras paixões mais ou menos antigas. Tirei um livro de Roberto Bolaño: Estrela Distante. Estou a relê-lo. E estou a gostar de o fazer.

segunda-feira, outubro 03, 2016

Mundo de merda

Dizem por aí que este mundo é uma merda. Não sei o que pensar ao certo. Tem dias...

Qual seria o qualificativo a aplicar a um mundo que não fosse uma merda? O que diria? Que este mundo é um doce? Um mundo em que todos fôssemos obesos e com a dentição arruinada por excesso de açúcar seria melhor que um mundo que é uma merda, onde as coisas cheiram mal e estão sujas, mesmo quando são brilhantes e apetecíveis?

Qual é o antónimo de merda? Temo que a resposta seja muito complicada. Tão complicada que o mais certo é nem sequer existir. Antónimo de merda? Será mijo? Não, não me parece. Este mundo é um mijo! Não soa grande coisa.

Talvez por isso este mundo prossiga tal como vem sendo: uma merda. Talvez este mundo não tenha grande alternativa ou, então, teremos de inventar o contrário de merda e aplicá-lo ao nosso quotidiano na esperança de amanhã encontrarmos um lugar mais limpo. Ao menos isso.

sábado, outubro 01, 2016

Memória falsa

Eram como irmãos mas lutavam constantemente. Batiam-se com raiva e compaixão; quando um deles atingia o outro e o magoava era como se golpeasse o próprio corpo e sofria também.

"É assim que os rapazes devem ser - dizia a avó às amigas, enquanto bebiam chá na saleta e viam os miúdos em combate, lá fora, no jardim - um pouco cruéis e um pouco estúpidos. Só assim crescem saudáveis."

sexta-feira, setembro 30, 2016

Viva Miró!



A decisão de manter as tais 85 obras de Miró em Portugal é notável. O facto de virem a ficar no Porto é uma notícia excelente. Podem Passos Coelho e os seus rapazes franzir o depilado sobrolho pretendendo fazer passar a ideia de que as questões culturais não são tratadas de forma diferente quando temos a direita ou a esquerda no poder que, perante esta exemplar evidência, todos percebemos a realidade. A esquerda (ainda) encara a Cultura sob uma perspectiva muito diferente daquela que orienta a miopia direitista neste capítulo da nossa vida colectiva. Não vale a pena discursar, basta-nos olhar. E ver.

Os que se aprontavam para vender em leilão a célebre colecção Miró e lucrar com isso devem estar a roer nervosamente as unhas por terem deixado escapar entre os dedos tão apetecível oportunidade de negócio. Foi por pouco! Mesmo em termos meramente economicistas a venda em leilão seria um negócio fatela. Por muito elevado que fosse o montante amealhado tratar-se-ia de fraco lenitivo económico. A instalação da colecção na Cidade Invicta acrescenta valor ao Porto, à Região Norte e ao país. É uma espécie de produto de exportação ao contrário que atrai riqueza sem sair de Portugal. Ainda por cima significará mais alguns postos de trabalho directos e indirectos… qualquer pessoa que olhe para isto com boa-fé só vislumbra vantagens na decisão política tomada pela “geringonça”. O lucro será conseguido a longo prazo e, no fim das contas, o erário público irá ganhar muitíssimo mais do que ganharia com um negócio de mercearia feito à pressa como se tem feito quase sempre que se trata de vender a coisa pública a benevolentes e desinteressados investidores privados.

A rapaziada da direita precisa de estudar as fábulas moralistas com mais atenção. Talvez os jovens governantes laranjinhas não tenham compreendido bem a história da Galinha dos Ovos de Ouro; reconheço que não está ao alcance de todos. Deixo a sugestão de que abordem essa e outras fábulas na próxima Universidade de Verão do PSD em vez de andarem a aprender a fazer spin ou a descobrir a melhor forma de dar graxa ao chefe. Iam ficar melhores pessoas e líderes mais preparados, disso não tenho dúvidas.


quarta-feira, setembro 28, 2016

Nuvens

Nem a Utopia é o Paraíso nem o Paraíso é uma Utopia.

Ambos fazem parte do imaginário colectivo, caricaturas da ambição humana. Mas não será pelos seus traços exagerados e deformantes que iremos deixar de sonhar com uma e outra coisa, da mesma forma que sonhamos cada dia que vivemos.

Ainda ontem vivi horas inexplicavelmente felizes. Nunca me farto de viver horas assim.

segunda-feira, setembro 26, 2016

Almada (Mestre) Almada

Panfleto Social de José de Almada Negreiros

Eh comunistas! Eh fascistas!
Eu sei, eu sei:
«Não há esconderijo senão nas massas»!

Assim mesmo necessitais de inimigos.

Chamais construir: eliminar inimigos.

Volto à leviandade
a essa acrobata mágica
que realiza como a imaginação

volto ao meu poder
à minha colaboração terrena
volto às gaffes

ponho outra vez os meu olhos
inconvenientes como o amor

e tiro aliviado os óculos sociais
graduados de conveniência
e com os aros oficiais.

Desisto do escritor
prefiro o protagonista do livro do autor
fujo de casa e escondo-me na rua
fujo do nome e mais do renome

não há esconderijo senão nas massas.

A Arte só vale quando todos forem artistas
e não só os privilegiados
esses que responderam à chamada.

Morro farto de procurar semelhantes
só vejo chefes e secretários
mestres e discípulos
filhos e pais
secundários e principais
amos e servidores
criados e patrões
todos iguais.

Mais uma geração a cantar construção.
Conto quatro:
um, dois, três, quatro
Todos por bem.

Eu sei, eu sei:

«não há esconderijo senão nas massas!

Os ricos que paguem!

Os pobres que morram!

não seremos pobres nem ricos
todos iguais
iguais como os semelhantes

custa muito todos semelhantes

dá no mesmo todos iguais.»

Achei altas montanhas fora da geografia
longe da perseguição
mas o meu corpo vulnerável não passa
por onde me passa a alma.

in Poemas, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001

domingo, setembro 18, 2016

La muerte

Hoje acordei com vontade de me irritar com qualquer coisa. Levantei-me a resmungar, deixei escorrer um pouco de café frio para cima de um pé descalço, tive de me apressar em direcção à sanita não fosse a natureza abusar da minha confiança.

As razões para que despertasse em mim a irritação desejada pareciam acumular-se com a precisão do mecanismo do relógio que não tenho no pulso mas que trago dentro da memória. Quando consegui uma chávena de café razoavelmente fumegante e me sentei na mesa da cozinha com os Cem Anos de Solidão à minha frente não tinha bem a noção do que fazia.

Continuo a leitura de Garcia Márquez (há quantos dias ando eu nisto?). Como sempre levo tempos infinitos para terminar um livro porque encaro a leitura como se fosse um peqeuno-almoço para o meu cérebro e para a minha imaginação. O que é verdade é que, após duas páginas, a irritação esfumou-se, o meu desejo matinal viu-se recusado pelo subconsciente que o havia convocado.

Estraguei a estragação do dia que se aprontava para me aparecer um pouco lá mais para a frente na linha do tempo. Percebi que não posso desejar irritar-me com alguma coisa e ler, em seguida, algumas páginas de um livro magnífico. Uma coisa não se compadece da outra.

O coronel Aureliano Buendía enforcou-se no castanheiro do quintal.

sábado, setembro 17, 2016

Um lugar

Todos os dias, desde o despertar ao momento de fechar os olhos, um gajo procura aquele lugar onde pode ser quem imagina que é. Ser humano, sem dores demasiado violentas nem angústias muito particulares. Não sei se toda a gente procura esse seu lugar. Eu procuro.

É um lugar aberto, todos podem encontrá-lo. Não tem portas nem janelas nem paredes nem nada que o defina, é assim mesmo, um lugar. Todos podem estar nele, só têm de aceitar a regra: ser humano. Sei que é pedir muito, para uns, quase nada, para outros.

Nem sempre sou capaz de encontrar o estado de espírito certo para lá estar embora saiba onde fica esse lugar. Por vezes consigo lá chegar e por ali ficar uns bons bocados.Mas não é sempre. Tem dias.

sexta-feira, setembro 09, 2016

Cartas de Guerra

Assisti a "Cartas de Guerra", o filme de Ivo Ferreira a partir de textos de António Lobo Antunes. Enquanto estava na sala de cinema várias vezes pensei que "este filme é o mais belo que já vi". À medida que a coisa foi avançando reformulei esta ideia e ficou mais ou menos "este filme é um dos mais belos que vi ultimamente".

Quando saí estava seguro de que "Cartas de Guerra" é, seguramente, um dos mais belos filmes que vi ao longo da vida. Agradou-me a fotografia a preto e branco, fui surpreendido pelas engenhosas soluções narrativas que entrelaçam voz off com diálogos, memória das personagens com o momento do presente que vivem no filme, deixei-me embalar pelo ritmo geral da coisa.

Como é possível fazer um filme de guerra assim? Muito bom. Recomendo vivamente.

quarta-feira, setembro 07, 2016

Elegia de sarjeta

Há por aí tanta gente que vive de parecer! Gente que constrói uma falsidade com fortíssimos e visíveis blocos de ilusão, blocos atestados, carimbados, validados, blocos feitos de nuvem autenticada como se fosse cimento. Assim se constroem palácios de reputação duvidosa.

Olhando bem o mundo circundante todo ele é feito desse modo: ilusão autenticada. Quando se confundem a ilusão e a realidade? A partir de que momento estamos nós dispostos a fazer de conta que somos alguém, que a merda que fazemos é filet mignon?

O que me incomoda é o desplante que temos em pretender que o nada é tudo e que tudo pode ser exactamente igual a nada.

Ha, as aparências! Ha, a vacuidade do saber, a inconsistência do ser... acho que vou beber outro copázio. Outro copázio bem cheio e fazer um brinde à mentira.
Ela merece.

sábado, setembro 03, 2016

Trindade

Um gajo enfia-se dentro da sua cabeça e encontra uns quantos macacos a divertirem-se, enquanto vão fingindo que lhe limpam o pó às ideias e as arrumam mais ou menos em prateleiras húmidas e moles. Um gajo fica espantado por encontrar tantos macaquinhos no sótão. É uma surpresa.

Um gajo desce as escadas que levam ao seu próprio pedestal. Desce-as com panache, um pé após o outro, a pose é triunfal, os degraus escorregadios. Não há ninguém a olhar, ninguém aplaude, ninguém está extasiado com  o espectáculo daquela brilhantíssima descida. Ninguém, a não ser o próprio. É uma tristeza.

Um gajo tenta evitar uma incómoda sensação de abandono. A solidão não quer deixá-lo sonhar com a glória que julga merecer mais do que qualquer outro ser vivo. Um gajo sorri ao espelho mas a imagem reflectida não lhe devolve os dentes amarelos. É a vida.

Surpresa, tristeza, vida: santíssima trindade de uma existência fantasmática, quase humana.

sexta-feira, setembro 02, 2016

Cem Anos de Solidão

Ando a reler Cem Anos de Solidão. É um livro já amarelecido que tem viajado entre estantes. Da casa dos meus avós para a dos meus pais (onde o li aqui há uns bons anos) e, agora, saltou da estante de minha casa para a mesinha de cabeceira.

Que coisa magnífica!

A leitura proporciona-me momentos de tão grande intensidade que, por vezes, me sinto a pairar algures entre o dia de hoje e o dia, no passado, em que li estas palavras pela primeira vez.

Deve ser isto que consideramos uma obra intemporal.

quarta-feira, agosto 31, 2016

31 de Agosto

Com o final de Agosto regressam pessoas. Pelo menos é essa a sensação que tenho após algumas voltas pela cidade e arredores, agarrado ao volante do meu carro. Pareceu-me haver mais movimento e, sobretudo, um aumento muito acentuado dos níveis de stress que por aí andam.

Manobras automóveis mirabolantes, daquelas de arrepiar pelo desrespeito absoluto que representam seja às regras de trânsito seja à vida alheia; velhinhos e velhinhas em fila para jogar na raspadinha e um gajo à espera para poder comprar o jornal; grupos de pessoas a falar alto, narrando peripécias das férias na mesa do café, outras fazendo o mesmo gritando para o telemóvel; mais carros em cada cruzamento, em cada rua, em cada avenida; uma estranha sensação de preenchimento. Ainda assim, tudo na paz do Senhor.

Terminam as férias, regressa a ansiedade?

terça-feira, agosto 30, 2016

Ego

O reconhecimento faz-nos assim tanta falta?
Se calhar faz. Ou talvez não, já não tenho a certeza.

Um gajo precisa de ter um ego do tamanho de um autocarro para acreditar em si próprio, sem dar muita atenção ao facto de praticamente não existir.

domingo, agosto 28, 2016

Reflexo solar

Há um conceito um pouco vago e bastante maleável, plástico mesmo, que é o conceito de Cultura. A Cultura constrói-se, não se colhe na Natureza, não é uma coisa selvagem. Assim, num misto de tradição e de inovação, cada sociedade humana constrói a respectiva Cultura. 

A aceitação de uma determinada Cultura não é obrigatoriamente pacífica.

sexta-feira, agosto 26, 2016

Dúvida existencial

Há dias em que me sinto sozinho. Sozinhinho, como dizia quando era criança e queria expressar aquela angústia que nos provoca a sensação de abandono e que, por sermos crianças, não dói tanto quanto virá a doer mais tarde mas já incomoda pra caralho. Um gajo é puto mas compreende mais ou menos.

Esta solidão é abstracta. Estou acompanhado, há muita gente, gente por todo o lado, mas a sensação de estar só mordisca-me o coração. É como se fosse adolescente outra vez ou nunca tivesse deixado de o ser realmente. Sinto que não tenho ninguém a quem possa explicar, com um mínimo de exactidão, as angústias que me trespassam a alma e que, caso tente fazê-lo, vou soar pedante e presunçoso.

Poderei alguma vez sentir-me um adulto completo? Em boa verdade: o que é isso?


quarta-feira, agosto 24, 2016

Informação

As notícias nos jornais reduzem-se a cabeçalhos. A vida vai boa para os míopes que, assim, conseguem ler tudo o que é importante. Aquelas letrinhas pequeninas, debaixo da gordalhufas que fazem os títulos, as pequeninas não interessam nada. Só chateiam.

Depois temos os canais televisivos de informação. São horas e horas de emissão que é necessário preencher dê lá por onde der. Os tais cabeçalhos dos jornais reproduzem-se nestes canais que funcionam como câmaras de eco; o cabeçalho uma, duas, três mil vezes repetido até ao final do dia.

Amanhã o assunto será outro.

Há sempre uma notícia mais importante (é a que consegue mais tempo de antena) e o tema vai mudando. É necessário satisfazer a gula por novidades que caracteriza os cidadãos que são mais consumidores que cidadãos. A ponderação e a reflexão são entregues a especialistas que enxameiam os écrãs como moscas da fruta num laboratório científico.

As histórias são mastigadas até nos serem devolvidas num autêntico vómito.

Estou cansado desta merda.

segunda-feira, agosto 22, 2016

Regresso

Sinto o tempo a regressar.
Os dias recomeçam ignorando o dia de ontem, imaginando dolorosamente o dia de amanhã.
Dentro do meu peito há coisas que se comprimem, coisas que se encostam umas nas outras, coisas que causam incómodo.
Sinto o tempo a regressar.
Vem montado nos ponteiros de um relógio anacrónico, qual fantasma sussurrando na vertigem de um mostrador digital, o tempo regressa e, com ele, vêm tantas coisas que havia já esquecido!
O meu corpo reconhece-se no espelho que é o regresso do tempo.
O mundo volta a ficar teimoso.

Esta sensação faz de mim eu, outra vez.
Sinto que regresso com o tempo.

domingo, agosto 21, 2016

Olímpico

Aos atletas portugueses que competiram nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro quero agradecer terem-me feito acreditar com eles que é possível ir até ao fim.

Mesmo que não tenham vencido as suas provas, ainda que tenham fracassado completamente ou quase alcançado a glória, estive com todos e cada um deles, como se tivesse viajado até ao estádio, como se me tivesse materializado no pavilhão, como se tivesse sulcado as águas numa velocidade alucinante.

Agora que os Jogos chegam ao fim apercebo-me que, mais do que nunca, os atletas portugueses puderam sonhar e seria injusto que não tivéssemos sonhado com eles.

A vitória não é mais do que um pormenor.

domingo, agosto 14, 2016

Vergonha

A história repete-se todos os anos. Verão é sinónimo de desgraça.

Os incêndios florestais saltitam um pouco por todo o território nacional, continente e ilhas atlânticas não escapam a esta estúpida fatalidade do destino. É em ocasiões como esta que podemos concluir em definitivo que o destino é mera consequência dos acontecimentos diários e que o destino dos homens e das suas coisas depende do que os homens fazem, não fazem ou poderiam ter feito.

O aproveitamento vampírico que os meios de comunicação de massas fazem desta desgraça é nojento. Não há acontecimentos mais importantes nem mais dignos de nota do que a miséria simbolizada pela bestialidade dos incêndios e a desolação das cinzas fumegantes.

Sinto vergonha.


sexta-feira, agosto 05, 2016

Palavras não bastam

Sentir um adorzinho nos olhos, uma nuvem de não-sei-bem-o-quê logo atrás, em direcção ao cérebro, uma grácil ternura em relação ao mundo todo... gosto de certas tonturas quase tanto como gosto de certas tontices.

Não ter responsabilidades imediatas, poder desligar o modo "sério", ser um pouco mais louco do que estou normalmente disposto a ser. Estas coisinhas são pequenas fontes de prazer imediato.

Poder não fazer nada, poder fazer tudo ou quase tudo o que imagino ser capaz de fazer. Desligar daqui, ir para ali, já ali! Pairar como uma nuvem, voar como uma serpente, rastejar como um elefante adormecido.

As palavras não chegam lá.

A felicidade pode ser um lugar solitário. 

terça-feira, agosto 02, 2016

Do caderninho


Andar muito tempo na Lua tem os seus custos. Perde-se alguma gravidade.


domingo, julho 31, 2016

Olhar a paisagem

A obra de arte não começa necessariamente com uma ideia.
Um desenho não tem obrigatoriamente de obedecer a um esboço prévio.
Um texto não resulta sempre de um trabalho aturado.
Há momentos inspirados que nos projectam pelos ares e fazem de nós coisas voadoras.
Quando voamos e olhamos para baixo podemos assustar-nos ou sentir uma liberdade imensa (há mais possibilidades).
Não é um pecado evidente querermos ser como Ícaro.

sábado, julho 30, 2016

Recuerdos


Saio de casa à hora do lobisomem
Agradeço à lua não estar cheia.
No carro evito o espelho,
apesar de tudo receio lá não estar.

Caixas de cartão como cadáveres de
objectos consumidos, peles de cobra esquecidas
na esquina de uma primavera