domingo, junho 30, 2013

Momento subterrâneo

Aquele olhar profundamente azul era tudo o que tinha para oferecer. A consciência da sua extrema beleza retirava-lhe humanidade. A forma como se movia, suave, um estilo exótico... embrulho adorável para um conteúdo de merda.

quinta-feira, junho 27, 2013

Uma questão de Fé?

Vi-a hoje pela manhã. Estava numa loja de telemóveis, aguardando pacientemente a minha vez de ser atendido. Ela estava lá. Velhinha, meio curvada, bem vestida, bem calçada, bem arranjada, óculos escuros redondos. Segurava na mão esquerda uma revista. Não reparei logo mas segurava a revista com um guardanapo de papel a proteger os dedos.

O tempo continuou a passar daquele jeito que passa nesses lugares de atendimento ao público. Muito devagar, um toque sonoro a marcar um novo número. Uma coisa tediosa. A senhora continuava sentada, segurando a revista mais ou menos à altura da face. Tirara os óculos escuros e olhava a página aberta à sua frente. Murmurava qualquer coisa... ou seria impressão minha?

Passado algum tempo voltei a reparar na mulher. Estava encostada ao balcão e trocava algumas palavras pouco amigáveis com o rapaz que a atendia. Ele falava de modo ríspido, parecia alterado. A mulher não olhava para ele, continuava concentrada na revista como se esperasse que do seu olhar pudesse resultar alguma coisa de especial. Era estranho.

Voltei a distrair-me com outra coisa qualquer. Até que a senhora se afastou do balcão e começou a falar alto. Agora estava próxima de mim e pude ver que a revista estava aberta numa página que exibia uma foto do Papa João Paulo II, o santo. Era essa fotografia que a mulher fitava insistentemente. Apercebi-me de que nunca virava a página. Quase pude sentir a presença do defunto Papa.

Todas as pessoas dentro da loja tentavam ignorar a mulher e a sua santa companhia. Ela saiu para a rua. Pude vê-la através da vitrina. Estava especada no passeio a conversar com a fotografia. Passados alguns minutos regressou. Voltou a dizer qualquer coisa (as minhas dificuldades auditivas não me permitiam compreender o que ela dizia por estar um pouco distante). Dirigiu-se à máquina que distribui as senhas de atendimento e retirou uma. Voltava à carga.

Reparei que os empregados da loja não estavam particularmente preocupados nem lhe davam muita atenção. O que estava mais próximo de mim, ao notar que eu olhava a velhinha, ofereceu-me um sorriso muito suave, como quem diz "não faz mal". Compreendi que se tratava de um episódio frequente. Ao sair olhei a mulher uma última vez. Conversava com a fotografia de João Paulo II. Dizia algo e esperava uma resposta em silêncio reverencial.

Vim embora a pensar em questões de Fé. Questões de Fé e de loucura.

domingo, junho 23, 2013

Hipocrisia

A Igreja Católica lidera a contestação à adopção de crianças por casais homossexuais. Os que vêm nesta possibilidade uma aberração absoluta argumentam com tradições culturais e leis naturais. A falta que faz uma figura paternal, o contra-senso que é ter duas mães ou dois pais.

No entanto, as notícias sobre abusos sexuais de menores praticados por membros da Igreja Católica que deviam, à partida, garantir o seu bem-estar material e espiritual, continuam a sair nos meios de comunicação social a um ritmo estonteante. Os órfãos à guarda de padres em instituições de solidariedade social não estão a salvo dos horrores deste mundo. Encontram crueldade predatória onde lhes prometeram amor.

Não ouço as vozes indignadas dos tais guardiões da moral e dos bons costumes, que tanto receiam ver homossexuais a cuidar de crianças, pedir o fecho dessas instituições e a condenação à prisão dos padres pedófilos. Estou em crer que muitas dessas crianças estariam bem melhor entregues a casais anti-naturais do que a homens que são impedidos, por regra religiosa, de o serem.

Sei que estou a misturar "alhos com bugalhos", homossexualidade nada tem a ver com pedofilia. Quero apenas sublinhar a hipocrisia da Igreja Católica que parece mais preocupada com as aparências do que com a essência de certas questões. Não me parece que seja o bem-estar da criançada que move os padres.

sexta-feira, junho 21, 2013

Apocalipse (ainda não)

A Revolução Industrial começou a mostrar aos seres humanos como poderiam ser substituídos por máquinas na produção de bens de consumo. A Revolução Informática mostra-nos como somos, cada vez mais, dispensáveis. Os seres humanos estão a mais no seu próprio mundo!

Ainda assim, muitas indústrias continuam a apostar na mão-de-obra humana. Como os custos dessa mão-de-obra são dispendiosos, os donos das fábricas "deslocam" os seus locais de produção. As fábricas são colocadas em países onde a democracia nem sequer chega a ser uma miragem, explorando  a fome, a pobreza e a ambição de uma vida melhor de multidões de trabalhadores sem direitos. Exploração do homem pelo homem na sua versão mais pura e mais dura.

Hoje surgiu-me uma pergunta: e quando, também nesses países, a Revolução Informática for uma realidade? Quando não houver outros países pobres para "deslocar" a produção? A crise que agora vivemos no Mundo Ocidental terá de alastrar inevitavelmente. Os custos de produção irão subir nos países onde, agora, são atractivos para os exploradores.

Com a população humana a aumentar de forma imparável, com a exploração de recursos a atingir níveis próximos do insustentável, com o alastrar da consciência dos direitos individuais... o balão enche e incha até quando? Até não haver mais mundo para explorar?

Será aí que o termo "apocalipse" vai fazer sentido?

terça-feira, junho 18, 2013

segunda-feira, junho 17, 2013

Pensamento profundíssimo

Porque haveriam todas as pessoas de querer ser inteligentes? Afinal de contas, a ignorância é um lugar de descanso e as pessoas andam quase sempre cansadas ou, pelo menos, muito se queixam disso.

Mas, se a ignorância é um lugar de descanso, a estupidez é um verdadeiro resort de luxo para os cansados da vida.


domingo, junho 16, 2013

Balão vazio

A imagem que tenho da nossa sociedade e do nosso modo de vida parece-se, cada vez mais, com um balão vazio. Um daqueles balões coloridos que, cheios, prometem voar pelas alturas, brilhantes, perfeitos e lisos mas que, quando perdem o ar que os encheu, ficam com aquele aspecto murcho, o aspecto desolador das coisas que não correspondem mais à esperança que nelas se depositou.

A cada dia que passa torna-se mais evidente que as promessas que fazemos a nós próprios são quase tão difíceis de cumprir quanto o sonho que as permitiu é impossível de encaixar na realidade. Há qualquer coisa de nefasto nesta constatação. Recordo as histórias de Philip K. Dick, com os seus "heróis" tristes, constantemente desiludidos com a revelação dos factos em confronto com as suas ilusões.

É isso! A cada dia que passa tenho a sensação de viver dentro de uma novela de K. Dick. E se a minha vida fosse apenas o resumo de umas quantas páginas de um conto de Dick? Se eu e tu, caro leitor, não formos mais do que personagens de ficção de uma novela deprimente escrita por um autor que já morreu? E se a nossa vida for apenas um balão que se esvazia lentamente, um balão que está quase, quase a atingir o seu último sopro?

segunda-feira, junho 10, 2013

Suspensão

O tema já foi aqui várias vezes abordado. Não é nada de novo mas é algo que me (pre)ocupa a cabeça com uma frequência quase diária.

Trata-se da questão que sempre se coloca quando pretendo terminar um trabalho criativo. Seja qual for a técnica ou a natureza do objecto (seja escrito, pintado, desenhado, falado) como saber se está, de facto, terminado?

A verdade é que nunca nenhum objecto é definitivo. Nem a Mona Lisa, nem a catedral de Notre-Damme, nem Os Lusíadas ou outra coisa qualquer. Pretender que um objecto artístico tem uma forma perfeita é desconhecer a própria essência da Arte (ena, ena, escrevi arte com "A", isto é importante!).

Todo o objecto artístico resulta de uma suspensão (esta ideia já tem barbas brancas e faltam-lhe alguns dentes). O artista pára de trabalhar o objecto (suspende a acção), considerando-o apto a ser observado. Na verdade há sempre mais uma pincelada, uma vírgula que poderia mudar de lugar, uma esquina que poderia ser arredondada. Mas o artista precisa de parar, tem necessidade de suspender os gestos, abrandar a intensidade reflexiva, a cabeça já começa a fumegar...

Volto a esta questão porque hoje, ao pensar sobre isso pela enésima vez, senti um pequeno sobressalto: e se aquilo a que chamo "suspensão" não for mais do que mera desistência? Ai Jesus! Se for assim, então toda a obra de arte resulta da incapacidade do artista para ir mais longe na criação da sua obra. Toda a obra de Arte resulta de uma desistência do artista. Isto soa-me mal, parece-me coisa grave.

Ou talvez não. Talvez seja assim mesmo. Talvez toda a Arte (ou "arte" com "a") seja desistência, talvez seja o reconhecimento da grandeza do acto criativo. Talvez todo o artista seja apenas um ser humano perdido na infinitude das suas capacidades individuais. Ou talvez não... preferia que talvez não...

sexta-feira, junho 07, 2013

Limbo

Nos últimos dias tenho andado tão embrenhado no mundo real que este aqui, o virtual, quase deixou de existir. Já houve tempos em que as coisas se passaram exactamente ao contrário.

Escrever, desenhar, pintar, o mundo real está tão... real que estas actividades se têm revelado penosas, difíceis mesmo. O relógio, o calendário, os instrumentos que marcam o tempo andam a tapar as nuvens, ocupam a paisagem com uma força exagerada, agigantam-se.

A minha esperança é que, a qualquer momento, surja um coelho branco todo bem vestido a saltitar detrás de um automóvel e me diga qualquer coisa.