quarta-feira, junho 30, 2010

Arte lúcida


No domingo li uma entrevistazinha a Sandro Resende, 34 anos, artista plástico, que preconiza com convicção aquilo que designa por "profissionalização do artista". A perguntadora lhe pergunta: "Quando fala na profissionalização do artista, fá-lo por oposição a amador?" ao que ele retruca, imagino que sem pestanejar: "Não. Quero dizer que cada vez mais a arte é profissional. O artista boémio, dos copos, está, felizmente, em decadência. A arte também deve ser vista como uma profissão." Isto deixou-me a pensar profundamente.

Por um lado compreendi que, quem bebe copos, não pode exercer com competência nenhuma profissão. A menos que os beba com a moderação que a publicidade às bebidas alcoólicas sempre recomenda. Um profissional bêbado dificilmente conseguirá manter a postura vertical que toda a profissão exige a quem a exerce com seriedade e rigor de matemático.

Por outro lado percebi como os tempos mudaram e estão mudados. A imagem romântica do artista boémio que destila visões interiores através de obras tantas vezes impossíveis de compreender está fora de moda. A arte quer-se limpa e límpida, como tudo o que vai vingando neste mundo: limpeza e clareza, parecem ser palavras de ordem a levar a sério para que os tempos continuem a correr.

Sandro tem o cuidado de juntar à afirmação anterior que "Claro que o artista não é um advogado, a arte mexe com coisas muito diferentes e levanta questões complexas." Ora aí está uma grande verdade, se bem que apenas entrevista por metade. Não faz justiça à arte de advogar que, apesar de mexer em coisas diferentes, não fica a dever muito às belas-artes no que toca a questões de complexidade e encantamento.

Finalmente sempre digo que Sandro Resende tem razão. Na verdade, o artista boémio está desde sempre em decadência, não é de agora que o está, sempre o esteve, ou não fosse boémio. O mundo global não se compadece com bebedolas que, de quando em vez, experimentam momentos de fugaz inspiração e nos mostram como, lá do fundo da sua demência alcoólica, conseguem vislumbrar coisas que nós, armados da nossa proverbial lucidez, não tivemos olhos para ver.

Este é o mundo de Madonna e não o mundo de Janis Joplin. É o mundo criado por frequentadores de ginásios e de clínicas de depilação a laser, onde os tipos peludos, com a barba por fazer, só encontrarão lugar sentados à porta do shopping center com uma mão estendida para a esmolinha do consumidor consciente e a outra escondida no bolso, onde guarda religiosamente a garrafinha cheia da zurrapa que lhe há-de trazer as visões apolcalípticas e magníficas que já não cabem nas portas estreitas da lucidez contemporânea.

terça-feira, junho 29, 2010

Aprender a gatinhar


Parece ser definitivo. A curva no gráfico da evolução das condições de vida para a maioria da população neste recanto da Velha Europa entrou em queda, vertigem de montanha russa.

Ainda ontem lia uma pequena notícia no jornal em que um empresário tuga, do sector têxtil, se mostrava esperançado por haver movimentações reinvindicativas na China, onde os operários fabris ganham, em média, 30 Euros por mês. Alvitrava esse empresário que, ganhando mais, os operários lá dos pequins e dos xangais do Oriente remoto, teriam outro poder de compra e, então, absorveriam parte significativa da sua própria produção que, nos dias que correm, inunda os mercados ocidentais como tsunamis, não deixando hipótese de concorrência.

30 Euros por mês? Ainda por cima, não havendo Natal, não há subsídio, nem acredito que o ano tenha mais meses de ordenado que os devidos ao calendário.

A China é a China e, num mundo tão desiquilibrado como o nosso, o prato chinês na balança das forças internacionais pesa mais sozinho que os outros todos juntos, fazendo com que a tendência das condições de vida por todo o planeta seja inclinada na sua direcção. Estamos ajoelhados e de cabeça baixa perante a força incontrolável da Economia, desumana e bestial.

Portugal é quase um acidente no panorama económico internacional, uma ruga no lençol da perfeição orçamental, uma insignificância a escorregar em direcção ao mar e a caír em África, não tarda. Imaginemos a coisa de outro modo, façamos uma revisão profunda dos nossos anseios e do nosso modo de vida. O futuro é risonho, há quem diga, mas é um sorriso desdentado esse que tem para nos oferecer, pois quando chegar decerto será um futuro velho.

Observemos bem os moçambicanos, os macaenses, os timorenses e outros povos próximos de nós, temos muito a aprender com eles. Temos de reaprender a viver... reaprender a sermos humanos.

domingo, junho 27, 2010

Libertação


Diz-se que os fantasmas ficam a pairar sobre o planeta Terra enquanto têm contas a ajustar com a sua existência carnal. Quando essas contas terminam, por ajustadas, a essência fantasmagórica encontra a sua porta para a Eternidade, ou lá para onde vogam essas quase-coisas, e desaparecem de vez. Para bem deles e nosso bem também, não sei porquê.

Nos últimos dias têm sido publicados, um pouco por todo o lado, textos de opinião sobre o falecido José Saramago.

Dos que vão sendo dados à estampa aqui, na lusa pátria, muitos são de uma agressividade extrema que, estou certo, muito teriam agradado ao escritor, se vivo fosse, e, não posso afirmá-lo, certamente vão ajudando o seu fantasma a entreter-se enquanto por aqui anda pairando.

Saramago abriu feridas profundas na sociedade portuguesa. Algumas foram cosidas à sovela ou simplesmente gangrenaram, outras, muito poucas, sararam sem deixar cicratiz que o olhar veja. Seja da igreja católica ou da intelectualidade mais descaída à direita, os remoques chovem como sapos sobre o fantasma do nobelizado escritor. Penso que nunca haverá paz definitiva nesta questão tão portuguesinha. Porque Saramago foi um milagre social, um neto de analfabetos que se tornou escritor de mérito, e porque nunca acreditou em milagres por lhes encontrar sempre uma explicação em acções humanas. Isto desagrada aos tais intelectuais de direita, todos eles mais ou menos princípes neste mundo merdoso por direito de nascimento e classe social, e desagrada aos padres da igreja, mais interessados em manter os mistérios no respectivo lugar sombrio do que permitir que se revelem sob a luz do entendimento humano.

Saramago foi um homem algo desatinado. Reconheço que entre as palavras e os actos nem sempre mostrou a coerência que faria dele um santo dos ateus. Proponho que nos concentremos cada vez mais na obra que deixou, que desfrutemos do prazer da leitura das páginas que escreveu, e vamos olvidando docemente os actos humanos por ele praticados, tão dados às fraquezas da carne e do espírito.
Quando formos capazes de o ler, apenas, o que não será pouco, o seu fantasma poderá, enfim, encontrar a tal luz, ou porta, ou que coisa seja, que o leve para além deste lado. Libertemos o fantasma.

sábado, junho 26, 2010

Magia

Os Lobos, jogadores da selecção portuguesa de rugby, cantando o hino (vale a pena ver aqui) antes de um jogo do mundial em que foram gloriosamente trucidados por adversários muitíssimo mais fortes sem nunca terem desistido de uma jogada que fosse


Há qualquer coisa de estranho na forma como o coração se me aperta quando vejo os jogadores alinhados antes do jogo para cantarem o hino nacional. Portugal é, para mim, uma coisa abstracta, um desenho no mapa, uma fronteira meio apagada, nada que me faça perder o sentido de largueza que o espírito me recomenda sempre que penso em mim, nos meus e nos outros. Sejam os outros os que entram ou que saem, fiquem por cá ou passem apenas, em trânsito, para outras vidas. Quero dizer que não ligo muito à ideia de nação, nem de pátria, vistas assim, da perspectiva geográfica ou de clã alargado e descrito pela cor da pele conjugada com o rasgar dos olhos.

Então porque fico todo derretido quando uma mão-cheia de gajos, vestidos com calções e mangas curtas, desafinam a plenos pulmões numa cançoneta cuja letra me incomoda mais do que me inspira sentimentos grandiosos? Que estranho sortilégio me liquefaz a razão e ma envia, misturada na bílis, para os confins de cavernas escondidas do meu corpo? Que sensação é esta de pertencer a algo que não sei nem posso descobrir que coisa seja por mais que busque e rebusque no meio das tripas e dos órgãos que me mantêm o sopro da alma a soprar na força que me dá a minha vida?

Só pode ser magia. Deve ser isto que se designa por magia. Uma coisa que se sabe que existe mas à qual não se lhe encontra explicação que a faça deixar de ser coisa e a transforme em nome decifrável no catálogo dos sentimentos humanos. Como acontece com as bruxas, que ninguém nelas acredita mas que todos sabem que por aí as há e por aí andam a engendrar os mais descabelados bruxedos.

Vou continuar a ficar estúpido de cada vez que o hino for cantado e as lágrimas me vierem visitar as fronteiras do olhar que deito ao mundo e que o mundo me reenvia para dentro deste ser que, imagino, eu sou, mas mal conheço. Estúpido, sim, mas limpo, estranhamente purificado.

quinta-feira, junho 24, 2010

Síndroma de Salomé


Há por aí quem tema pela sorte dos jogadores da Coreia do Norte quando regressarem ao seu país-prisão, após o Mundial. Na conferência de imprensa depois do jogo dos 7-0, Tiago foi questionado por um jornalista asiático que lhe perguntou se sentia algum receio pelos seus adversários. O jogador português respondeu daquela forma que só os jogadores de futebol sabem responder, dizendo uma mão-cheia de coisas que não querem dizer nada de especial.

Segundo rezam as crónicas, os jogadores da Coreia do Norte que foram derrotados pela selecção portuguesa em 1966, acabaram em campos de concentração e trabalhos forçados. Como o tempo está suspenso naquele local impossível, depreende-se que, desta vez, os resultados possam ser semelhantes.

Como se não bastasse terem o destino suspenso sobre as suas cabeças, os jogadores norte coreanos foram vítimas de um azar particular uma vez que, talvez esperançado numa jornada épica que elevasse ainda mais a sua condição de divindade de pacotilha, o Querido Líder permitiu que, pela 1ª vez na história, o desafio fosse transmitido em directo pela TV. Não consigo imaginar maior catástrofe para os jogadores que tiveram de suportar o jogo português.

Andamos nós sempre a reclamar do empenho e do profissionalismo dos nossos jogadores. Que não correm, que não cantam o hino nacional, que não comem como deve ser, que não merecem as fortunas que ganham à laia de ordenado, eu sei lá que mais. O que pensarão os cidadãos da Coreia do Norte em relação aos seus jogadores? Serão eles juízes implacáveis do desaire dos seus compatriotas? Estarão tão sedentos de sangue quanto os cidadãos franceses que parecem dispostos a comer os jogadores gauleses num pratalhão em receita de nouvelle cuisine?

O futebol torna-nos irracionais e, a quente, após uma derrota pesada que nos transforme sonhos em pesadelos, somos capazes de pedir cabeças humanas como se fôssemos Salomés. Isto é apenas um jogo, não é uma questão de vida ou de morte, nem as equipas de futebol são exércitos à conquista de territórios inimigos. Não são, pois não?

quarta-feira, junho 23, 2010

Nação bipolar


Ontem foi dia de jogo. Foi na hora de almoço que se jogou. Portugal sentado à mesa, bacalhau e vinho a ajudar à festa.

O povo estava desconfiado. Os Navegadores, como foram baptizados os que este ano defendem as cores da nossa bandeira, tinham feito um jogo mesquinho contra a Costa do Marfim. À boa maneira portuguesa já muitos diziam por aí que mesmo os da Coreia do Norte haviam de chegar para os nossos. A fé dos tugas esgota-se em Deus com demasiada frequência. Ou na Virgem. Tanto faz. Os tugas dificilmente acreditam nas capacidades dos homens, principalmente se esses homens forem outros tugas. Ainda por cima estava a chover na Cidade do Cabo. Toda a gente sabia que os portugueses gostam de sol.

Depois veio o jogo e a desconfiança foi-se transformando em medo. Nos primeiros minutos os coreanos deram luta. Até que os golos começaram a entrar. No final a desconfiança dera lugar à euforia. Nós somos assim.

Durante o jogo, a cada golo, eu erguia os braços, à minha volta outras pessoas faziam o mesmo. Algumas gritavam, outras ficavam de boca aberta. Imaginei como seria se, no passado, quando os exércitos partiam para a guerra, as batalhas fossem transmitidas em directo. A cada cabeça cortada um "HURRA", a cada intestino a caír na poeira "GRANDE GOLO", perante a imagem do campo de batalha repleto de corpos, sangue e corvos gordos como camiões do lixo os olhos dos adeptos do exército vencedor marejados com lágrimas de alegria.

O jogo acabou. Não morreu ninguém. Ficou 7-0. Os tugas já tinham comido o bacalhau e bebido o vinho. Estava na hora de saborear uma aguardente e voltar ao local de trabalho, produzir riqueza e combater a crise. Agora já muitos diziam "somos os maiores". Até à próxima sexta-feira, pelo menos. E depois? Depois logo se vê.

segunda-feira, junho 21, 2010

domingo, junho 20, 2010

Nem todos te amam depois de morreres (se o teu nome for Saramago)


No post anterior fiz uma pequena reflexão sobre o efeito purificador que a morte tem nas vidas que vivemos como se, sendo o fim, resultasse como uma espécie de desinfecção, uma derradeira limpeza, antes de saírmos de cena.

Mas, depois de ler o que escreveu o pasquim do Vaticano (ler e ver aqui) sobre José Saramago, percebi que não é bem assim.

Os católicos apregoam o perdão e a reconciliação entre os homens mas nem sempre o praticam. Deus não os livra da mesquinhez e da vingançazinha quando a podem exercer. Talvez porque, como tantas vezes nos fez notar Saramago, a mesquinhez vingativa é um traço bem vincado na divindade de Jeová. Se o pai deles é assim porque haveriam os filhos de ser diferentes?

Por cá tivemos a atitude do nosso presidente (ler aqui), o cidadão Cavaco Silva, católico recurvado e papista servil, que, a pretexto de ter prometido à família uma visita guiada às maravilhas naturais dos Açores, considerou ter alibi suficiente para justificar a sua ausência no funeral do escritor.

Saramago tinha afirmado em entrevista televisiva que Cavaco é "um campeão da banalidade". Se alguma prova faltasse para lhe dar razão, a atitude do presidente aqui está para mostrar como, mais uma vez, foi ajustada a sua análise. Cavaco teve a sua vingançazita, pequenina e infantil, bem à medida da personagem que tão mal representa. Hoje podia ter mostrado grandeza de espírito mas apenas conseguiu evidenciar que não tem estatura para ocupar o cargo para o qual foi eleito. Se um presidente é o espelho do povo que o escolhe, ai Jesus, valha-me Nossa Senhora!

Concluo reconhecendo o meu erro no post anterior. Nem toda a gente te ama depois de morreres se o teu nome for José Saramago. Compreensívelmente.

Toda a gente te ama depois de estares morto


A morte tem este dom espantoso de aperfeiçoar aquilo que fomos em vida. Nada melhor que um funeral para nos fazer sentir coisas profundas. Perante a fragilidade de um cadáver arrumadinho no caixão esfumam-se todos os ódios. A contemplação do féretro é como olhar um espelho negro. É depois de mortos que os santos são canonizados e os grandes seres humanos são revelados em todo o seu esplendor. É a dança macabra da vaidade humana a rodopiar nas mentes dos que por cá ficam.

Daí toda a tristeza e grande parte da mágoa que deveras é sentida. E também daquela que é fingida.

sexta-feira, junho 18, 2010

Homenagem póstuma


O Amoroso
(na sombra de um pilar)
desenho concluído em 15 de Novembro de 2009



Inscrição no verso


Na verdade, após ter concretizado este desenho (que começou por ser um "Chapeleiro Louco"), saíu uma longa entrevista na Pública (que não li) com a senhora Pilar del Rio, a amorosa do gajo que dá a cabeça deste meu amoroso.


José Saramago faleceu esta tarde. Plácidamente, ao que consta. Paz ao que dele restar (duvido que seja uma alma, já que ele não acreditava nessas coisas).

quinta-feira, junho 17, 2010

Maravilha tecnológica

Um gajo


Conheço um gajo meio estranho. É um gajo que tem uma necessidade incontrolável de comunicar. Aquilo é quase uma doença!

Já falei com ele dessa sua obsessão (esta frase desliza como um skate!), tentei explicar-lhe que, por vezes (demasiadas vezes, na minha opinião) aquela torrente de ideias e imagens que ele larga para fora da cabeça, acaba por incomodar as outras pessoas. Ele concorda comigo e promete tentar controlar-se. Mas ainda hoje o encontrei a pregar, autenticamente. Assim à maneira do Santo António a pregar aos peixes. Olhei discretamente as caras que o rodeavam e notei que estavam todos de boca aberta. Uns com ar de enfado, outros pareciam espantados. Espantados apenas e mais nada. Senti alguma pena dele, mas o gajo é completamente descontrolado.

Disse-me um dia que, quando começa a falar, é como se as ideias lhe ganhassem corpo dentro da boca e precisasse de as deitar fora, só para poder continuar a respirar. Explicou-me que o mundo só faz sentido quando verbaliza. E que verbalização dali vem!

As coisas que diz são consistentes e fazem sentido, mas ele descreve uma espécie de Apocalipse constante. Acaba por chatear. Lá no fundo aquele gajo é um chato de primeira. Mas, pensando bem, qual é o problema? As outras pessoas podem sempre virar costas e ir embora. Se o ouvem é porque há ali qualquer coisa que faz sentido.

O conselho que lhe dei foi que tentasse desenhar ou pintar, algo do género. Ele prometeu-me que vai tentar. Entretanto continua a falar. Fala, fala, fala... o discurso interminável dos loucos.

terça-feira, junho 15, 2010

Ainda a propósito


Corria o ano de 1974 (ou seria 1975?) quando começaram a chegar a Portugal e a Viseu, onde eu vivia, dezenas, centenas, milhares de pessoas fugidas às guerras civis nas ex-províncias ultramarinas. Chamaram-lhes "retornados" mas, em boa verdade, muitos nunca tinham sequer posto um pé em Portugal. Não retornavam, vinham, mais ou menos corridos, de Angola, de Moçambique, da Guiné... entre eles vários familiares meus que nunca conhecera. De súbito, a população cresceu imenso e o quotidiano cinzentão do interior pátrio ganhou uma coloração nova e muito mais garrida.

Entre as coisas inesperadas que então vieram agitar a modorra viseense, chegou um linguajar estranho e apelativo, uma forma diferente de falar português. Quero dizer, era um português com muitas palavras novas que rapidamente foram adoptadas pelos jovens lá da santa terrinha. A língua sofria, também ela, uma revolução e permitia-nos expressar os pensamentos de uma forma diferente. Como que nos africanizámos. África entrava na Beira Alta e misturava-se nela com um sabor ajindungado.

Recordo com prazer as sessões de conversa em que aprendíamos a utilizar novos vocábulos e, com eles, éramos capazes de falar coisas que antes não saberíamos dizer. O calão viseense, repleto de palavrões e expressões pouco recomendáveis, via-se enriquecido e expandido, uma festa!

Algumas expressões entraram definitivamente no linguajar das ruas: "iá", "meu", "bué", "ganza" (e outras que agora não estou a ver) são das mais utilizadas nos tempos que correm. "Pancos", "mauanas", "chuinga", "cubar" e sei lá que mais, caíram no esquecimento. Nunca ninguém se queixou nem foi preciso criar qualquer tipo de acordo linguístico. A língua, quando anda nas ruas, não pede licença para entrar nas nossas vidas pela simples razão que ela É a nossa vida.

Falem e escrevam como deve ser, meus irmãos, com liberdade criativa! Assim é que é bonito.

segunda-feira, junho 14, 2010

Liberdade é felicidade



Espanta-me que haja quem faça desta questão um cavalo de batalha tão furioso e continue a insistir numa espécie de cruzada purificadora contra o acordo ortográfico.

Os inimigos do acordo agitam as mais descabeladas razões e despertam fantasmas hediondos; que havemos de ficar todos a falar uma língua de trapos que ninguém entende nem ninguém saberá como escrever, que a coisa vai custar dinheiro (o que é de graça nos tempos que correm?), que estamos a abrir mão da nossa maior riqueza que é a língua portuguesa, enfim, quando um gajo quer dizer mal de alguma coisa não lhe custa nada encontrar motivos de horror.

Pesoalmente, tudo isto me soa como sendo uma falsa questão. Não me parece que venha a alterar significativamente a minha forma de escrever. Talvez esteja disposto a abdicar de uma ou outra consoante muda (se me lembrar disso) mas quanto aos acentos a coisa já pia mais fino. Sei que haverá alterações da escrita nos livros e nos jornais, mas não é isso que me vai incomodar. O português do Brasil sempre foi muito diferente do português que se gasta por estas bandas mas isso não impede que o compreenda bem. Quando lemos Eça de Queirós também por lá encontramos muita coisa estranha ao português contemporâneo. Onde está o problema?

Os 3 manifestantes da notícia que cito lá mais atrás devem estar furiosos. Não tanto por perceberem que o acordo vai mesmo para a frente, imagino que os irrite mais o facto de tão poucos estarem dispostos a manifestar desagrado perante coisa tão insignificante.

A língua portuguesa é uma coisa viva e, como tudo o que vive, adapta-se às circunstâncias. Deixemos o português viver. Quanto mais livre, mais feliz!

domingo, junho 13, 2010

Uma manhã chuvosa na capital do Império


Ontem de manhã fui ao Centro Cultural de Belém. Visitei a exposição "Tudo o que é sólido dissolve-se no ar" e a mostrazinha de trabalhos de Osgêmeos, "Pra quem mora lá, o céu é lá". Cá fora caía uma chuva miúdinha, daquela que se diz só molhar os tolos. Em frente ao Mosteiro dos Jerónimos, e ali por perto, dezenas de carros negros com chauffeur estacionados a esmo por tudo quanto era e não era lugar de estacionamento. Lá dentro, no Centro Cultural, o ambiente do costume.

Um parêntesis para dizer que em "Tudo o que é sólido..." há um painel de trabalhos de ilustração publicados no jornal O Combate no qual estão 3 desenhos da minha autoria. Finalmente cheguei ao Centro Cutlural de Belém sem ser na condição de visitante. Apesar da modéstia da coisa não deixa de ser uma curiosidade que me faz sorrir. Mas, adiante, que o motivo deste post não era propriamente estar para aqui a babar-me por tão pouco.

Quando saímos, a coisa continuava congestionada pela frota de veículos topo de gama. Em frente ao mosteiro havia velhinhas sentadas nos bancos da orla do jardim, com ar de gozo e chapéus de chuva abertos. Depreendi que não eram tolas. Uma ou outra personagem feminina vestida de forma estranha fez-me pensar que se trataria de algum casamento de socialites. Saí dali sem dar grande importância ao facto, apenas um pouco confuso, tal era a balbúrdia estabelecida no exterior.

Ao chegar a casa o mistério foi esclarecido. Havia nos Jerónimos uma celebração especial. Portugal e Espanha festejavam o 25º aniversário da adesão dos nossos países à União Europeia. Ok, então era isso. Agora tudo fazia sentido. As velhinhas com ar de gozo, os carros negros espalhados por todo o lado, as senhoras vestidas de rebuçado, era a Europa interpretada pelos habitantes da Península Ibérica: confusão e aparato. Assim é que é e é assim que é bonito.

quinta-feira, junho 10, 2010

Pacíficos


Portugal foi considerado o 13º país mais pacífico do mundo. É um lugar honroso, numa lista com 149 países (ver aqui). Também me parece que é merecido. Este país é um sossego. Apesar de uma ou outra confusão pontual, o dia-a-dia nesta fronteira da Europa costuma desenrolar-se sem grande agitação criminal. Parece que as coisas deixam de ser assim tão pacíficas quando vivemos pessoalmente alguma desgraça. Já tive a minha dose e, sei-o bem, ainda devo ter mais umas quantas situações de violência à espera lá mais para a fente, nalguma curva mais apertada do destino. Mas o ambiente global é civilizado e pacífico.

Note-se que, no entanto, Portugal tem vindo a descer alguns lugares nesta lista. Em 2007 estava em 9º e em 2008 atingiu o 7º posto. Não sei se é por estarmos aqui encostados no nosso cantinho ajardinado ou se tem a ver com a mítica paciência de Job que se costuma atribuir ao bom povo português. Mas sempre dá algum alento nestes tempos de profunda crise económica. Pode dizer-se que estamos tesos como carapaus mas somos pacíficos como baleias azuis.

O Brasil aparece colocado no 83º lugar, de braço dado com a antiga República Jugoslava da Macedónia, imediatamente antes dos Estados Unidos da América e de Angola. Ser pacífico não é pêra doce, a contenção popular exige um esforço geral de grande violência interior.

segunda-feira, junho 07, 2010

Ecos islandeses

propaganda eleitoral de O Melhor Partido, de Jon Gnárr


A Islândia continua a lançar nuvens estranhas sobre a atmosfera da Europa. Depois de ter passado de um prometedor país em termos económicos à bancarrota eminente, depois das nuvens de cinzas vulcânicas que deixaram o mundo todo numa tremenda confusão aérea, chega agora a notícia de um comediante que venceu as eleições para a Câmara Municipal de Reiquejavique.

A vitória de Jon Gnárr é um aviso sério para os políticos profissionais de todo o mundo ocidental. É certo que a Islândia tem apenas 320 mil habitantes e que a crise económica provocou um profundo desânimo na população. Mas não é menos certo que, um pouco por toda a Europa, assistimos à aplicação de medidas de contenção orçamental que significam um retrocesso nas condições de vida de milhões de pessoas. E ainda a procissão vai no adro!

Terá sido este o rastilho para o surgimento de uma nova ordem política? Teremos em breve uma vaga de humoristas a ocuparem lugares de chefia? Bem vistas as coisas tartar-se-ia apenas de colocar à frente dos destinos das nossas comunidades palhaços assumidos em substituição de palhaços disfarçados.

Aguardemos o futuro com um sorriso nos lábios.

domingo, junho 06, 2010

Caos total

Quanto pode um homem apaixonar-se e quanto tempo pode durar essa paixão?
Eu digo-vos, ó meus compinchas, que não há regra nem limite.
A coisa é mais do que eterna!
Quando nos dizem que as paixões esmorecem e que, no horizonte benigno, haverá de surgir uma coisa mais ou menos informe a que gostam de chamar "amor", eu vos aviso, compinchas meus... treta!
A paixão, quando nasce de rompante, leva mais tempo a desaparecer do que o tempo que dura uma vida. Porque a paixão não é mais o que o fogo do desejo. E quando esse fogo se canede (acende-se ninguém sabe como) nunca mais esmorece e, muito menos, se apaga. Se o amor existe, isso só pode ser paixão. Enorme, assolapada, absoluta. Para sempre. Desejo até que um dia desapareça a face da terra.
Caos total.

sábado, junho 05, 2010

Oferta de fim-de-semana


Charles Darwin terá afirmado que "Um matemático é como um cego num quarto escuro à procura de um gato preto que não está lá." É uma frase engraçada e um pouco obscura (repleta de escuridões e incertezas) que tenta brincar com a dificuldade (incapacidade?) de descrever o mundo que nos rodeia de forma objectiva e compreensível para os mortais comuns. Principalmente quando essa descrição é tentada segundo as regras abstractas da Matemática, essa coisa deslumbrante, apenas ao alcance de uns quantos cegos fechados em quartos escuros.

Li aquela frase (e retirei o essencial do páragrafo anterior) de um texto assinado por um tal Anthony Huberman, curador da exposição "para o cego no quarto escuro à procura do gato preto que não está lá" (ver aqui) em exibição na Culturgest, em Lisboa. O texto é muito interessante e, parece-me, sublinha a grandeza da tarefa que a arte contemporânea impõe, tanto aos artistas que a produzem, quanto aos espectadores que pretendem fruí-la.

Os artistas e os espectadores, quando tentam explicar o mundo que os rodeia através do objecto artístico, serão como os matemáticos, caindo facilmente num emaranhado de explicações que poderão resultar mais confusas que lúcidas.

A solução será deixar fluir as formas (a informação) através dos nossos sensores individuais, tentando retirar dessa situação alguma possibilidade de haver uma Revelação. A fruição artística é aqui encarada como uma brincadeira séria e profunda, como se olhássemos o mundo com os olhos deslumbrados de uma criança que aprende constantemente a reinventar o universo. É bonito. Já os expressionistas alemães haviam proposto algo do género lá para os primórdios do século passado.

Pessoalmente estou convencido de que tudo isto se passa num plano mais esotérico e menos atmosférico. Na minha perspectiva, o objecto de arte resulta de uma acumulação de energias nele depositadas durante o acto da sua criação. Essas energias ficam em estado de suspensão e são activadas (ou animadas) quando a energia individual do observador entra em contacto com elas. A fruição do objecto artístico resulta desta fusão de energias (a energia em suspensão do objecto com a energia pessoal do observador) que desencadeiam uma pequena tempestade cerebral de resultados imprevisíveis.

Quando o observador se afasta, a tempestade amaina e restam pequenas ondas de choque que se vão transmutando em memórias. Parece-me simples, apesar de praticamente inexplicável.

Quero dizer, esta ideia carece de comprovação científica (como provar a existência de tais energias?) e pode não significar nada para ti, leitor. É isso que faz com que esta ideia seja uma espécie de obra de arte. Ofereço-ta e espero que te faça bom proveito.

quinta-feira, junho 03, 2010

Valha-nos Nossa Senhora!


Eu evito falar de futebol aqui no 100 Cabeças. Quando falo de futebol entro em transe e deixo de saber o que estou a dizer, fico assim a dar para o zombie, com vontade de comer carne humana, principalmente se fôr carne do adversário. O futebol é a coisa que mais me faz perder o sentido de orientação das ideias. Posso até retorcer os factos propositadamente e com consciência de estar a fugir à verdade, como o Cristiano Ronaldo foge dos defesas adversários.

O futebol é a lua cheia do lobisomem que se esconde dentro de mim. Perante um jogo a valer eu rôo as unhas, eu como a cabeça dos dedos, eu grito, chuto no ar, cabeceio, insulto o árbitro e choro de alegria quando a minha equipa consegue, finalmente, um golo. Seja bonito ou seja feio.

Do mesmo modo, fico triste como uma noite de chuva miudinha se vejo os meus jogadores perder, no final dos 90 minutos. Mas, estranho sortilégio, após uns 15 minutos ou meia hora, tudo regressa ao estado normal. O coração volta a adormecer, o livro na mesinha de cabeceira brilha de novo, o filme no gravador chama por mim, enfim, as coisas boas, melhores que o futebol, envolvem-me outra vez e regresso ao meu ser civilizado. Tenha ganho ou tenha perdido, é indiferente.

Dentro de alguns dias vai começar o Campeonato do Mundo na África do Sul. O lobisomem cá dentro já se mexe de vez em quando. Imperceptívelmente, por enquanto. Vai acordar furioso quando for dado o pontapé de saída no jogo contra a Costa do Marfim e levar-me-à, doido, numa roda de emoções furibundas durante os tais 90 minutos.

Nunca hei-de compreender estas emoções descontroladas que o futebol provoca em mim. Tenho algumas suspeitas, algumas ideias, sobre o lugar de onde despertam estas animalidades violentas mas não quero reflectir muito sobre elas. O que sei é que há qualquer coisa parecida com prazer no meio de toda esta confusão. E, como com todos os prazeres desta vida, estou pouco interessado em compreendê-lo pois sei que isso poderia anulá-lo.

Quando o Campeonato começar só vou ver uma bola e uns quantos rapazes pouco inteligentes a chutá-la com arte para o fundo das redes da baliza adversária. Valha-nos Nossa Senhora!

terça-feira, junho 01, 2010

Uma questão climática

A Costa da Caparica num dia sossegado...


É o calor. Quando o sol aperta um gajo fica meio derretido, mais por dentro que por fora. As ideias parecem diluir-se juntamente com a massa cerebral. O bom senso mistura-se com a estupidez mais pura, o que gera uma estupidez conspurcada que não pode ser considerada coisa boa nem que assim o queiramos fazer.

Um gajo torna-se impaciente, não quer saber se está bem ou mal feito, se é assim ou não é. Que se lixe! Com o calor a esfregar-lhe a pele daquela maneira, com aquele enervante toque aveludado, quase discreto não fosse o suor, o que um gajo quer é decidir rápido e sair dali. Ir para a sombra, mergulhar no oásis da obscuridade, escapar ao demónio quente que é o calor. É assim que se vive nos países em que o Verão, quando chega, é para nos cobrir a todos, a despeito dos ares condicionados ou das regras de sobrevivência ditadas pela Protecção Civil. Um gajo quer lá saber de alguma coisa que não seja uma aragem fresca e uma cervejola bem gelada?

Bem podem chegar conselhos vindos da sábia Suécia ou exemplos da geladinha Finlândia. Nós aqui somos mais Marrocos, somos muito mais Mauritânia. Só não somos tão pretos por fora.

É claro que um gajo, num país assim, não pode dedicar demasiado tempo à reflexão atenta nem trabalhar muito mais que 10 minutos seguidos se estiver ao ar livre. Num país de Sol a palavra economia tem de significar uma coisa diferente que num país de Frio.

Lá para o Norte os gajos têm sociedades com uma organização espectacular. Há quem diga que os invernos rigorosos aproximam as pessoas, aquecem-se umas às outras, sentem-se bem quando estão apinhadas em pequenos molhos de gente.

Cá para o Sul as coisas piam mais fino, não se parece nada com aquilo. Nem pode! Um gajo quer é que o parceiro o deixe respirar, um gajo precisa é de alívio e sombra e coisas assim. Alguém tem de explicar a esses gajos sisudos que governam a União Europeia com os pescoços apertados em nós de gravata que, mais que uma questão cultural, política ou de mera organização social, o que nos separa é o clima.

Eles vêm gozar o Sol quando estão de férias e nós estamos por cá todo o ano. E é aqui que temos de trabalhar. Bem vistas as coisas, Portugal fica quase no norte de África.