quarta-feira, março 31, 2010

Caçar bruxas (Paradoxo 2)


Atente-se nas declarações que abaixo transcrevo retiradas desta notícia:

Anteontem à noite, o bispo auxiliar de Lisboa, D. Carlos Azevedo, falou dos casos de pedofilia entre membros do clero. Citado pela agência Lusa, afirmou: "É algo que nos faz ter vergonha que tenha acontecido. O povo de Deus sabe distinguir aquilo que são os falhanços de alguns membros do clero daquilo que é a vivência do mistério de Cristo e da vida em igreja e em Deus." Mas, acusou, há uma "campanha, que se transforma quase numa obsessão, numa caça às bruxas".

É interessante que D. Carlos Azevedo tenha utilizado a expressão "caça às bruxas" para vitimizar os padres acusados ou suspeitos de práticas pedófilas.

Por um lado está a colocar esses padres num plano pouco católico, comparando-os com bruxas, por outro lado está a reprovar a própria instituição que representa, uma vez que a igreja católica foi responsável pela caça e execução em praça pública de muitas bruxas por esse mundo fora, assunto que, na maior parte das vezes, prefere ignorar ou, mais simplesmente, esquecer. Pode ainda estar a referir-se aos processos levantados nos Estados Unidos nos anos 40 e 50 do século passado, contra os supeitos do "crime" de pertencerem a organizações de inspiração comunista.

Ultimamente a hierarquia católica tem-se desdobrado em pedidos de desculpas aos judeus, às crianças abusadas... não me lembro de ter ouvido um pedido de desculpas às mulheres-bruxas (ou aos homens-bruxos que também os há!).

São as célebres voltas que o mundo dá. Num dia estamos aqui, no outro podemos muito bem estar ali, no lugar onde anteriormente estava o outro, o inimigo odiado, transformando-nos nele próprio sem sabermos muito bem como nem porquê. O mundo está repleto de estranhos espelhos.

O cristianismo prega o perdão e, sempre que podem, as igrejas que se dizem suas guardiãs lá vão perdoando. A questão que queria deixar é esta: será que, não sendo católicos, podemos perdoar tudo, mesmo as monstruosidades mais abjectas como são estes crimes desumanos contra os fracos e os desamparados?

segunda-feira, março 29, 2010

Paradoxo (1)


O interior do automóvel era, no mínimo, luxuoso. A qualidade do som disparado pelas colunas (em sistema surround) não deixava nada a desejar que não fosse, talvez, outro artista. Ali dentro, tinhamos a sensação de pairar acima da rua, como se as rodas do carro não tocassem o solo.

Segurança, elegância, comodidade, não havia anúncio publicitário capaz de fazer justiça ao veículo maravilhoso em que as nossas cabeças vogavam, esquecidam das partes pesadas do corpo. O som vomitado pela aparelhagem troava nos ouvidos dos passageiros como uma tempestade de Verão acabadinha de fabricar lá nas alturas.

"God save the queen"... berrava o gajinho na parelhagem, "... and her fascist regim!" concluia, com guturais espasmos da sua garganta ensandecida.

O carro continuou a navegar o céu, impassível. "No future, no future, no futuuuuuuurrrreeee....", no meio de um tal luxo asiático haveria alguém capaz de dar crédito ao furioso vocalista no CD? Ok, ok, não há futuro, pronto. Deixa lá essa merda.

sábado, março 27, 2010

Dia Mundial do Teatro

Num Dia Igual aos Outros

Não sei se os dias do calendário chegam para tantas datas comemorativas. Hoje é o Dia Mundial do Teatro. Ontem não sei se houve alguma comemoração especial. Mas sei que há um dia para a Árvore, outro para a Mulher, um dia da Água, um dia para a Biodiversidade, etc., etc. e tal, por aí fora, comemoram-se as mais variadas maravilhas e mistérios do planeta e outras coisas que tais.

Voltando ao dia de hoje; em Portugal não se cobram bilhetes nos teatros (não sei se em todos ou se apenas na maioria) e é de bom tom rumar a uma sala próxima. Da parte que me toca irei ao Teatro Extremo, em Almada, rever "O Libertino", o texto demolidor do defunto Luiz Pacheco encenado pelo António Olaio e agora interpretado a solo pelo André Louro. Encenador e actor são meus bons amigos, o autor uma personagem que muito admirei pelos seus dotes literários. Uma comemoração que se anuncia pacífica, feita de reencontros.

Na 4ª feira fui mais uma vez ao Teatro Nacional D. Maria II, desta vez para assistir a "Num Dia Igual aos Outros" em exibição na pequena Sala Estúdio. Nuno Lopes e Gonçalo Waddington representam um texto arrebatador com uma competência extraordinária. O cenário e a proximidade física entre espectadores e actores fazem deste espectáculo uma experiência única. A não perder, caso se tenha oportunidade de assistir. Mais que muito bom, apenas extraordinário!

sexta-feira, março 26, 2010

A Natureza violada


Tenho-me estado a aguentar mas já não sou capaz de conter mais uma ou duas frases sobre o assunto.

Há quem pense que tenho maus fígados contra a igreja católica apostólica romana e que, levado por esse desprezo, essa inimizade, acabo, por vezes, sendo injusto e demasiado agressivo para com tão santa instituição.

E quem assim pensa pensa muito bem e com razão; a igreja católica causa-me náuseas convulsivas desde há muitos anos, desde que tive idade suficiente para pensar fora do ambiente místico em que fui criado. Ambiente esse que me levava a acreditar que havia um tipo barbudo (talvez mesmo barrigudo) pendurado no paraíso, a vigiar constantemente todos os meus passos, a anotar (com uma caneta de tinta permanente) todas as minhas faltas e ignorando com desdém os meus sucessos, uma vez que quando eu cometia uma boa acção não fazia mais do que a minha obrigação.

Os padres sempre me pareceram uma espécie com animais muito diferentes e variados. Como convivi com alguns de perto posso afirmar sem que me trema a voz que nem todos merecem o castigo que lhes é imposto quando abraçam a vocação.

A imposição da castidade é, talvez, a maior violência que se pode exercer contra um ser vivo. Aos gatos a gente sabe o que se lhes faz quando se quer impedi-los de fazerem o que não queremos que eles façam. Aos padres deixa-se-lhes ficar o instrumento do pecado, constantemente acicatado pelo desejo que arde como um fogo sagrado. Todos nós sabemos como arde quando pega fogo!

Desde sempre ouvi histórias de padres com filhos. Olhem o magistral O Crime do Padre Amaro, um retrato perfeito da tortura que é contrariar a natureza humana naquilo que ela tem de mais puro. À força de tanto torcer a natureza humana dos jovens candidatos ao sacerdócio, acaba-se por correr o risco de lhes retorcer o cérebro e infectar a alma. Muitos deles acabam doentes.

A pedofilia não pode ser encarada de ânimo leve e esta escandaleira que agora se descobre sobre as práticas sexuais doentias de um número demasiado significativo de padres católicos obriga-nos a questionar várias coisas.

Porque razão esta prática nojenta foi ocultada, ignorada e, tantas vezes, perdoada pela hierarquia da igreja católica com o actual Papa bem metido no assunto, enterradinho até às orelhas? Estes gajos não temem a Deus, duvido mesmo que acreditem na Sua existência.

Porque razão se insiste em fazer de homens coisas que não existem na natureza, impedindo-os de realizarem a plenitude do seu ser através da consumação do acto sexual?

Esta história macabra só vem confirmar a validade das reservas que muitos, como eu, mantêm contra esta puta babilónica disfarçada de paradoxo. Há coisas que não existem e outras, simplesmente, não podem existir de todo. Abram os olhos, façam dos padres seres humanos como os outros, deixem de violar constantemente a Natureza.

quarta-feira, março 24, 2010

Vertigem matinal


O título da notícia assusta um pouco: "Um quinto da população (portuguesa) tem doença mental". Chiça, é muita gente e o país é tão pequenino... Pousei o jornal e rodei o olhar à minha volta.

Na mesa em frente um casal aí pelas bandas dos cinquenta e muitos comia o pequeno-almoço. Reparei que o homem devia ser muito baixinho pois os pés tocavam o chão com a ponta dos sapatos. Tinha uma pele avermelhada e os olhos papudos, muito inchados. A senhora, atrás de uns óculos estranhos e debaixo de um penteado a condizer, mastigava a torrada com o olhar fixo no infinito da parede. Não trocavam palavra, pareciam comunicar através da mastigação ponteada com um ou outro slurp na chávena de café-com-leite. A notícia fazia sentido.

Despeguei a atenção do casal e fui deitar os olhos num velho que, tal como eu, lia um solitário jornal. O homem estava totalmente concentrado na leitura. Curvado sobre a mesa, ajeitava os óculos de vez em quando naquilo que poderia ser um tique. Seria aquele gesto automático indicador de algum tipo de perturbação mental a pedir droga prescrita por um médico especializado?

Ao balcão uma mulher jovem falava alto demais sobre qualquer coisa que não me interessou. O volume da conversa pareceu-me desajustado mas lembrei-me que o seu interlocutor, o dono do café, é um pouco duro de ouvido o que explicava aquela trovoada verbal.

Estava eu neste exercício voyeurista quando me apercebi do que estava a fazer, a olhar as pessoas, desconfiado e sugestionado por uma notícia de jornal. Envergonhado, virei a página de forma um tanto desajeitada e li uma pequena nota que informava que "A Samsung anunciou ontem o lançamento, no final deste mês, da primeira televisão com tecnologia 3D a chegar ao mercado português. Trata-se de um "marco histórico", disse o director da unidade de electrónica de consumo da Samsung, Filipe Carvalheiro, que permitirá passar de uma "atitude passiva" para uma dinâmica "interactiva e imersiva" de ver televisão." É mesmo disto que estamos a precisar! É bem possível que os portugueses andem deprimidos e desorientados por lhes faltar a possibilidade de uma atitude mais interactiva e, sobretudo, imersiva quando olham para a televisão, quais bois contemplando um magnífico palácio.

Mais descansado voltei a olhar as pessoas em volta que me pareceram bem mais dinâmicas e... normais, por assim dizer. Tal como eu.

segunda-feira, março 22, 2010

Mas onde é que eu já vi isto?



Como o Rei Édipo até acabou cedo, eu e a Ana resolvemos dar um saltinho até uma sala de cinema para vermos o mais recente filme de Woody Allen, "Whatever Works"("Tudo Pode Dar Certo" na versão portuguesa), completando dessa forma uma noite de Sábado na companhia dos clássicos da cultura ocidental.

Eu sei que um filme de Woody Allen nem sempre é um filme de Woody Allen, mas, neste caso, é exactamente um filme de Woody Allen. "Tudo Pode Dar Certo" tem todos os ingredientes mais comuns da filmografia do judeu baixinho e neurótico mais conhecido no mundo do cinema. É uma comédia ácida, com um conjunto de personagens que se cruzam e descruzam em situações com aquele grau de comicidade que ora nos faz sorrir, ora nos provoca o riso, embaladas em diálogos imaginativos e cheios de conteúdo que a escrita de Allen tão bem materializa. Enfim, um filme a anos-luz do sorumbático "Sonho de Cassandra" ou do magnífico "Match Point". Woody Allen recentrado na contemplação da profundidade do seu umbigo imenso. A coisa tal como ela é.

A ver com o gosto e o prazer do costume.

domingo, março 21, 2010

Alguma coisa faltou

Édipo em 1º plano(Diogo Infante) com uma difusa Jocasta mais atrás (Lia Gama)



Ontem à noite assisti à versão de Rei Édipo em exibição no Teatro Nacional D. Maria II. "A partir de Sófocles", informa o programa, esta peça resulta da interpretação feita por Jorge Silva Melo da imortal tragédia imaginada pelo grego.


Na minha perspectiva (que está longe de ser a de um espectador de teatro assíduo) a coisa vale essencialmente pela interpretação de Diogo Infante, no papel principal. O actor/director do Teatro Nacional mostra toda a sua categoria e manda à merda as vozes de burro que se insurgem contra o facto de ser ele o protagonista, acumulando com a responsabilidade de dirigir o monstro do D. Maria.


Quanto ao espectáculo, propriamente dito, houve coisas que não me soaram lá muito bem. Pareceu-me haver demasiada parra para tão pouca uva. Tantos actores, tantos músicos, tanto alarido em volta da excelência da adaptação e encenação de Jorge Silva Melo, haviam criado em mim uma expectativa porventura exagerada. Se calhar foi isso que me deixou um pequeno vazio quando acabaram as ovações da ordem e os actores regressaram aos bastidores. Se não estivesse à espera de algo verdadeiramente fora do comum talvez o tom destas linhas fosse diferente.


Este Rei Édipo pareceu-me bastante corriqueiro em termos de soluções narrativas, havendo mesmo um ou outro momento que me deixaram a nítida sensação de estarem ali apenas "a encher" espaços deixados vagos por vazio de ideias. Ou talvez fosse resultado de alguma auto indulgência do criador principal. Não sei. Talvez seja isso, na verdade é possível que não saiba do que estou a falar, correndo o risco de cometer algum grosseiro erro de leitura, alguma injustiça típica de quem não conhece por dentro o trabalho dos outros.

O que posso dizer é que esteve longe de me deslumbrar. Só isso.

sexta-feira, março 19, 2010

Traduções

O velho Errol, o Robin da minha infância (era a preto e branco, aqui está num belo cinemacolor)


Um dos meus heróis favoritos era o Robin dos Bosques. O meu avô autorizava-me sempre a comer a perna de frango "à Robin dos Bosques"; ou seja, permitia-me comer com as mãos o que, na minha infância, era um gesto de extrema liberdade; poder fazer tal coisa na companhia de adultos... e era isso que Robin significava: liberdade. Ele personificava o eterno lutador, alguém que defende uma causa pondo em risco a própria vida. Os alegres companheiros do herói completevam-no em qualidades e defeitos. Havia o abade, gordo e beberrão ou João Pequeno, um gigante hercúleo capaz de extraordinárias proezas físicas. Para lá de tudo isto Robin era ainda um homem apaixonado o que sublinhava o romantismo da personagem e da sua história. Quantas vezes revi Robin e Lady Mariam de mãos dadas, apertadas de encontro ao peito, olhando-se como se estivessem a contemplar as profundezas de um oceano escarlate?

Robin dos Bosques, quanta saudade...

Recentemente apercebi-me de um pormenor que me havia escapado ao longo de todos estes anos. No original trata-se de Robin Hood. Hood? Soava-me mais como Wood. Que raio de coisa significa Hood? Consultado o dicionário dá-se a revelação: "hood" significa "capuz". Então... Robin dos Bosques é, na verdade, o Robin do Capuz!? Ai, que susto! Como foi possível engolir este erro durante tantos anos? Claro, como Robin e os companheiros vivem escondidos numa floresta, não é difícil aceitar o nome de Robin dos Bosques. O tempo, a distância e uma tradução retorcida, podem construir uma imagem aparentemente intocável que, na verdade, é uma quase-mentira.

Tudo isto me fez recordar aquela primeira cena do filme "Snatch", quando um grupo de assaltantes disfarçados de judeus comentam uma anedota que diz que o cristianismo é uma religião fundada num erro de tradução. Os falsos judeus riem dizendo que a palavra que esteve na origem da designação de Maria nos evangelhos actuais significava, no original, mulher jovem (ver aqui explicação clara e objectiva).

Este tipo de erros só podem ser ultrapassados quando atingimos a idade adulta e começamos a questionar certas situações que, enquanto andamos a brincar e a saltar pela vida fora, não sentimos necessidade de pôr em causa. Isto mostra bem como uma mentira repetida até à exaustão acaba por se confundir com a verdade. Mesmo que a mentira seja (aparentemente)involuntária e de contornos (eventualmente) inocentes, é preciso ter muito cuidado com ela pois nunca se sabe quando poderá vir a estar na base de todo um culto religioso.

quinta-feira, março 18, 2010

Sangue


Os vampiros estão na moda. Séries de televisão, filmes, livros, artigos, revistas, o mundo parece enternecido com as intermináveis variações a partir da figura do conde Drácula. Não tarda haverá vampiros em peluche para ajudar a adormecer criancinhas, embaladas por sonhos arrepiantes de seres sobrenaturais com dentinhos proeminentes.

A apropriação do monstruoso vampiro pelos exploradores do universo adolescente parece-me abusiva. O monstro perde em carisma o que ganha em vulgaridade e falta de espessura. A figura hiper-romântica do Drácula de Bram Stroker, aquele que morre na contemplação da mulher amada, adaptado às sagas novelescas para consumo das massas acaba coberta de ridículo e presta-se a variações verdadeiramente apalhaçadas. O vampiro perde a aura de ser extraordinário e único para se transformar numa personagem digna daqueles filmes impossíveis com o Elvis Presley a protagonizar jovens palonços por quem todas as rapariguinhas desfalecem.

Esta vaga sangrenta que tem coberto os mass media de subprodutos intragáveis guardava um desenvolvimento inesperado,este no palco do mundo real. As recentes manifestações de rua em Banguecoque, capital da exótica Tailândia, arrasaram de vez o imaginário popular, deixando os vampiros de ficção em muito maus lençóis. Os manifestantes oferecem aos repórteres de imagem de todo o mundo um autêntico festim macabro quando recolhem e derramam nas ruas centenas de litros de sangue humano em sinal de protesto contra os governantes locais.

É uma espécie de auto-vampirismo contestatário e sacrificial carregado de um simbolismo abstruso que, decerto, é lido de forma diferente conforme o país ou o continente onde as imagens são mostradas.

Retiradas do contexto tailandês, as imagens ganham outras dimensões quando lidas na Europa urbana ou na China rural. Um habitante da Amazónia decerto verá naqueles rios de sangue um augúrio diferente do que um camponês das estepes russas. O espectáculo do sangue a correr nas ruas asfaltadas de Banguecoque é uma coisa estranha que merecia um estudozinho iconológico sobre o impacto das imagens televisivas no mundo globalizado.

Os vampiros reais, aqueles que vivem dissimulados entre nós, decerto ficam a salivar perante tamanho desperdício.

quarta-feira, março 17, 2010

O buraco da fechadura


Ontem assisti a algo que nunca tinha assistido. Vi, perante os meus olhos arregalados, uma pessoa a ser acossada com perguntas complicadas e demasiado íntimas ao ponto de se esconder mais fundo dentro de si própria a cada nova investida. Uma, duas, três, quatro, muitas perguntas, demasiadas perguntas, algumas repetidas até próximo da exaustão. E a pessoa em questão a encolher-se lá dentro, a fechar-se, a baixar a cabeça e a torcer os dedos finos das mãos pequeninas até me deixar a sensação de que espreitava o mundo como se os seus olhos fossem o buraco de uma fechadura.

A situação em si não é relevante nem eu sinto capacidade ou direito de a referir directamente. O que me impressionou foi o tempo que a coisa durou. Como se houvesse ali uma suspensação absoluta, um momento sem fim, uma coisa morna que nunca iria aquecer ao ponto de entrar em ebulição. Chegou mesmo a incomodar-me aquela busca de refúgio dentro do próprio indivíduo, aquela capacidade obstinada de ouvir e não responder, aquela doçura sofrida de guardar fundo as razões de tanto aparente sofrimento.

A pessoa em questão, após grande resistência, lá foi abrindo um pouco a porta daquilo que a incomodava. Não muito. Uma frestazinha apenas. Mas, no fim da história, continuou a espreitar, apenas, o mundo que respira cá fora. Como se o seu corpo fosse uma sala fechada a sete chaves onde deambula uma alma esperançosa na descoberta de algo que ninguém sabe ainda o que é.

domingo, março 14, 2010

Grandiosidade e vulgaridade


É a comunhão proporcionada por uma narrativa comum a um grande grupo de pessoas que nos permite sentir como fazendo parte de um todo. Seja num concerto de rock, num jogo de futebol, numa manifestação de rua ou na missa de Domingo. Quando a multidão se unifica, quando a voz do indivíduo se mistura com as vozes de todos os outros e se eleva em coro, ele sente o corpo a expandir-se, a alma a crescer, ele faz parte de algo muito maior, uma coisa grande e grandiosa. Está-se próximo do extâse.

Ele é igual a mim e igual a ti. Nós somos ele e somos uma coisa única, capaz de vencer tudo ou sermos derrotados juntos. Aí reside a beleza da coisa. A sensação de pertencer a algo maior que o próprio mundo sem deixarmos de ser quem somos. Podermos perceber que há muitos mais indivíduos que pensam e agem de maneira semelhante à nossa.

Esta ideia aplica-se também ao discurso artístico, à criação de obras capazes de comunicar com um grande grupo de pessoas, obras que não se esgotam numa complexidade exasperante, tão característica de certas criações contemporâneas. A obra de arte, para o ser, terá de proporcionar ao indivíduo a possibilidade de romper a cortina de significados que a cobre, terá de permitir que o indivíduo a complete através do exercício da sua capacidade de leitura.

Uma grande obra de arte oferece-se a um grande número de indivíduos, permitindo a comunhão do grupo no mar dos seus significados. Uma grande obra de arte transporta consigo uma narrativa comum.

Quando uma obra é hermética e deixa o observador eternamente de fora, a rondá-la, perplexo perante a incapacidade de a compreender, falha o que deveria ser o seu objectivo primordial: comunicação. É uma vulgar obra de arte e nunca uma grande obra.

quarta-feira, março 10, 2010

Da loucura


Tenho reparado que aqueles que normalmente designamos como loucos são personagens obcecadas com alguma coisa. Obcecadas a tal ponto que tudo o que não contribui para a sua crença particular se torna supérfluo. É por isso que os loucos têm aquele brilhozinho nos olhos. É o brilho da certeza absoluta.

Quando estamos seguros de nós próprios e sabemos que aquilo é assim mesmo e não há que duvidar, os gestos tornam-se fluídos, a língua desata-se-nos e as palavras jorram num contínuo avassalador. Sentimos alegria, ficamos eufóricos, as coisas fazem sentido. O mundo fica completamente redondo e nem os pólos são chatos.

Os outros olham-nos de soslaio com um sorrisinho maroto. Vêem-nos loucos porque estamos loucos. Loucos de alegria. A loucura é uma alegria incontrolável provocada por uma súbita compreensão do mundo que nos rodeia. Quando experimentamos essa sensação nunca mais voltamos a ser o que éramos. Nem nós, nem o mundo, nem nada.

sábado, março 06, 2010

Dias santos


Há dias assim, dias santos. Dias que acontecem mesmo sem que tenha chegado o Domingo nem a Páscoa, dias que não precisam de nada disso para serem assim mesmo: santos. Hoje foi dia santo para mim.

Estava eu a resolver uns quantos assuntos pendentes, agarrado a esta coisa, tropeçando na NET, escrevinhando textos, respondendo a e-mails, actualizando outros blogues com mais cabeça, quando ouvi sons lá em baixo que mostravam que as minhas meninas se preparavam para ver o filme "Ligações Perigosas" de Stephen Frears. Como os assuntos que tinha em mãos estavam adiantados e longe de serem urgentes, resolvi descer as escadas só para ver a primeira cena do filme. Desci. Sentei-me. Vi a primeira cena. Melhor dizendo, revi a primeira cena e a segunda e a terceira, enfeitiçado revi todo o filme.

Já perdi a conta às vezes que vi "Ligações Perigosas". Mais que cinco, seguramente, e menos que dez, disso estou certo. O deslumbramento do guarda-roupa, a perfeição dos desempenhos dos actores, a fluidez exemplar da narrativa, são algumas das razões que me fazem rever o filme com tanto prazer, quase avidez. Estou certo que o tempo, numa situação como esta, não passa. O tempo paira simplesmente, como um pássaro levado pelo vento. Quando o filme acaba, catrapum! O pássaro cai com estrondo. Mas não se magoa.

Agora estou de regresso às minhas obrigações (com este parêntesis, para escrever este post), calmamente e revigorado. A arte, seja a sétima ou outra qualquer, tem esta capacidade de santificar os dias que vivemos.

sexta-feira, março 05, 2010

Disney obscuro




Ontem fui ver a nova versão de Alice no País das Maravilhas, a mais recente obra de arte cinematográfica de Tim Burton. Como tem sido norma de há uns tempos para cá com os filmes de grande consumo, Alice é em 3D e o espectador não se safa de usar uns óculos especiais para poder enfiar-se no interior da tela. Para quem está a ficar pitosga, como é o meu caso, o artefacto não dá muito jeito, mas... adiante.


Tratando-se de um filme realizado para a casa Walt Disney, Alice tem alguns pormenores que parecem não terem sido coisa de Tim Burton. O desenlace final ou a dança do Chapeleiro Louco são objectos algo estranhos ao tom global do filme que dá assim para o obscuro.


O argumento recupera as personagens do costume mas dá-lhes umas voltas inesperadas. Burton parece querer restituir aos contos infantis aquela estranheza um pouco cruel que os caracterizava no tempo em que os animais falavam e não se pensava em termos políticamente correctos. As personagens têm características assombrosas. Desde o magnífico Chapeleiro de Depp à desconcertante Rainha Vermelha de Helena Bonham Carter, passando pelas figuras animadas como a Lebre de Março, cada personagem desempenha momentos delirantes.


O cenário e os artefactos de cena têm um grau de pormenor e uma inventividade deslumbrantes. As peças de mobiliário são desopilantes. É difícil descrever o que me vai na cabeça.


Fiquei com a impressão que o filme talvez dispensasse os efeitos 3D sem perder muito com isso. Abreviando: um filme espectacular para fãs e não fãs do mestre Burton, uma releitura felicíssima da obra de Lewis Carrol. Apesar dos tais momentos em que Tim Burton parece lutar consigo próprio é uma obra marcante no imaginário deste início de século.


Bravo Tim!!!

quinta-feira, março 04, 2010

Uma coisa pastosa


A notícia não é de primeira página, é quase secreta (ler aqui). Mas é uma notícia ilustrativa do modo como a nossa sociedade se vai tornando, a cada dia que passa, numa coisa cada vez mais pastosa e peganhenta.

O universo editorial português foi recentemente engolido pela editora Leya que adquiriu e amalgamou numa casa só uma série de editoras que vinham construindo o universo dos livros em Portugal. A ASA, a Caminho, a Dom Quixote, entre outras, foram adquiridas por este gigantezito editorial, vergadas a uma lógica de mercado que obedece à célebre Lei de Lavoisier.

Certamente embalados pela visão magnífica do físico francês, os responsáveis da Leya resolveram destruir um número considerável de obras literárias que se encontravam armazenadas. A razão: dificuldade de colocação das ditas obras no mercado. Um objectivo: reconverter o papel dos livros em pasta de papel para futuras edições do Grupo Leya. Também nesta natureza plastificada que é a sociedade de consumo nada se perde, tudo se transforma.

A tal notícia revela que: Dezenas de milhar de livros da autoria de Jorge de Sena, Eugénio de Andrade, Eduardo Lourenço e Vasco Graça Moura, publicados pela ASA ao longo da última década, foram destruídos recentemente pelo Grupo Leya. Atente-se nos autores referidos e fica-se com uma ideia da amplitude do acto.

A lógica neoliberal e pós-moderna justifica a atitude. Afinal o Grupo Leya tem o lucro como principal (único?) objectivo para a sua existência. É a lógica de que tudo é descartável e tem um prazo de validade, que a volatilidade das modas comanda o mundo que vamos habitando. Nos tempos que correm a lógica consumista encurta o tempo de vida útil de todos os objectos sejam eles telemóveis, pares de sapatos ou livros. Não há distinção. As coisas são feitas para serem consumidas num curto espaço de tempo.

A questão que se coloca é: e a nossa sociedade também é objecto de consumo? Tem um prazo de validade? A Democracia também pode destruir-se para fabricar um sucedâneo que se lhe assemelhe vagamente mesmo que seja mais uma coisa pastosa?

terça-feira, março 02, 2010

Uma coincidência



Não sei bem porquê, esta tarde cedi a um impulso antigo. Finalmente decidi-me a adquirir o DVD de "O Gabinete do Dr. Caligari", o mítico filme expressionista de 1920.

Tenho uma certa curiosidade por filmes desta época. "Metropolis", "Nosferatu", "O Couraçado Potemkin" ou "Ivan, O Terrível", são títulos que fazem parte da minha pequena colecção particular.

De imediato me entreguei à tarefa de visionar "O Gabinete..." e qual não foi o meu espanto quando a cena final me remeteu para... "Shutter Island"! Não vou aqui expor as razões da estreita relação que estabeleci entre os argumentos destes filmes para não estragar a surpresa de possíveis espectadores do filme de Scorcese. Quem já tiver visto "O Gabinete..." poderá avaliar esta minha insinuação se se deslocar a uma sala de cinema próxima para ver Leonardo Di Caprio a franzir o sobrolho nas cenas finais de "Shutter Island". O que me espanta (ou talvez nem isso) é a coincidência. "Shutter Island" foi a minha última visita a uma sala de cinema e "O Gabinete..." uma curiosidade antiga que só agora foi satisfeita. Ele há coisas...

segunda-feira, março 01, 2010

Enterrados


A satisfação dos portugueses com a democracia bateu no fundo. Eles que são tendencialmente de esquerda e não gostam de maiorias absolutas de um só partido. Têm reservas ao monopólio dos partidos e gostariam de participar mais. Em menos de 40 palavras é o que se pode concluir do estudo "Representação política - O caso português em perspectiva comparada", organizado pelos politólogos André Freire e José Manuel Leite Viegas, do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do ISCTE. (ler mais aqui)

Só quem anda a dormir não seria capaz de perceber esta onda de insatisfação. O nosso sistema político benificia os poderosos e arrasta na lama as ilusões de uma sociedade mais equilibrada e igualitária. O Zé Povinho já não usará o chapelito que Bordalo Pinheiro lhe deu nem terá aquele jeito especial para o manguito, mas continua a ser comido e cagado com o mesmo desprezo de sempre. E isso não pode ser agradável, muito menos ser aceite com indiferença.

A partidocracia estabelecida é uma choldra. Somos governados pela escória da sociedade que os jornais continuam a apelidar de "elite". Mas qual elite, qual cara... puça! Basta olhar para a cáfila ministerial ou para as hienas nos cargos mais altos da Função Púb(l)ica para perceber que, com esta gentalha no comando dos destinos da nação, não há fundo no poço em caímos.

Sinto-me desorientado. É evidente que o sistema político se esgotou numa teia de interesses mesquinhos e saloios. Que somos enganados e esgadanhados por uma cambada de moleques mal jeitosos, saídinhos das clientelas partidárias. Uns putos de merda, incapazes de olhar para lá dos seus compridos narizes de Pinóquio. Mas o mais grave é que, no actual estado de coisas, eles são a alternativa a si próprios. Ou seja, podemos saltar da firgideira mas iremos caír, inevitavelmente, no fogo deste inferno mole que se desfaz um pouco mais a cada dia que passa.

Não estou a ver solução nenhuma que prometa um mínimo de ilusão benfazeja. Cada vez menos acredito que possamos saír deste atoleiro em que estamos enterrados até ao pescoço. É só lama por todos os lados (ir aqui para ter uma imagem mais completa).