quarta-feira, junho 24, 2009

Inquietação


Uma pessoa está inquieta. O mundo roda, aparentemente, como é costume; às voltas sobre si próprio, em voltas mais largas ao redor do Sol, como se dançasse uma valsa eterna com o universo inteiro enfiado no mesmo salão de baile. Mas uma pessoa está inquieta.

Os automóveis rolam lá fora. Olhando-os cá de cima, da janela, parecem mover-se sózinhos, máquinas e motores em andamento, independentes da vontade humana. Rolam nas ruas, rolam nas estradas que são como veias do corpo imenso da cidade. Ininterruptamente. É impossível imaginar o mundo sem automóveis a rolar. Um mundo repleto de automóveis parados é um cadáver de mundo. E uma pessoa sente-se inquieta.

No café a televisão fala para si mesma. Ninguém parece dar-lhe atenção. Passam imagens terríveis de pessoas ensanguentadas, pessoas furiosas, outras parecem assustadas. Logo a seguir a vedeta mais recente sorri para nós. Então tudo regressa ao seu devido lugar. Aquele sorriso vale milhões e as pessoas assassinadas deixam de ter importância. Mas a inquietação não desaparece, antes se transforma. A televisão prossegue o seu monólogo.

Caminhando rua acima uma pessoa cruza-se com outras pessoas, em tudo semelhantes. Ninguém parece aperceber-se da inquietação alheia. Uns sorriem, outros nem por isso. Alguns sentem uma vontade imensa de chorar. Outros quase rebentam de alegria. Passam para lá e para cá, desviam-se, páram, voltam a andar.

É assim a vida na cidade ocidental. Longe de deus, longe dos homens, longe de tudo o que está próximo, mais longe ainda daquilo que é longínquo. Máquinas que são como pessoas e pessoas que se assemelham a máquinas em perpétuo movimento. Diz-se que "parar é morrer" e uma pessoa fica inquieta.

A inquietação põe-nos em movimento, mantém-nos vivos. Caminhamos a correr, respiramos de forma sincopada, como máquinas de viver. No dia em que sossegarmos iremos morrer?

domingo, junho 21, 2009

Oxalá


"Do que tenho medo é do teu medo." terá escrito William Shakespeare. Olhando as notícias que nos chegam de Teerão não é possível evitar um apertozinho no coração. Não conheço nenhum iraniano mas isso não me faz falta para compreender a frase do velho Will.
Viver num regime orientado por religiosos obedientes à palavra de um deus que ninguém vê (um deus que "enlivrou" ao contrário do outro que "encarnou") não pode ser saudável para a alma de quem preze a Liberdade. Deus é deus e não compreende a banalidade absoluta que é ser homem. Ainda por cima, quando são homens a interpretar a sua suposta vontade, então está o caldo entornado!

Já não me lembro muito bem como era a vida em Portugal quando tinhamos os bispos sentados ao lado dos ditadores que nos orientavam vontades e necessidades. Recordo a pobreza das pessoas vestidas de negro, num luto permanente, imagino que em luto pela vida, mesmo que disso não tivessem consciência. A Revolução, quando aconteceu, foi como um presente de Natal que as pessoas não tinham pedido. Uma surpresa magnífica que, passados tantos anos, ainda não foi totalmente desembrulhada.

O que se passa nestes dias em Teerão? Será uma nova Revolução, esta sem deus na encomenda? O que querem os iranianos? O que se passou realmente nas eleições agora contestadas? Não sei. Não sabemos nem podemos saber. A única comparação que posso estabelecer é a da minha vaga recordação da angústia que era viver sob o olhar reprovador de um poder semi-divino, capaz de reparar até nas cuecas que um gajo vestia ou no comprimento dos cabelos e na cor dos olhos da nossa paixão. Um pavor.

Posto isto só posso desejar uma coisa, que os iranianos descubram o caminho que os conduz à Liberdade. Um caminho decerto completamente diferente do nosso. O caminho deles para a sua Liberdade.

Oxalá o encontrem e deixem de ter medo.

quarta-feira, junho 17, 2009

Começar de novo


Ser um indivíduo numa sociedade cujo principal objectivo parece ser a camuflagem e o esquecimento de si própria pode tornar-se uma manobra complicada. O faz-de-conta geral deixa pouco espaço para grandes lirismos ou projectos individuais cuja base de sustentação seja um ideal ou uma crença sustentada na "razão pura". Resumindo a confusão anterior: não é nada fácil "ser" quando a maioria valoriza o "parecer".

Vem-me à memória a velha frase dos anarcas "A igreja é o ópio do povo". Em boa verdade, a necessidade de escapar, de fugir para lá dos limites do nosso corpo, seja individual ou social, é a grande meta do ser humano. A cada um o seu ópio particular.

Há quem vá para o ginásio suar as estopinhas em corridas quilométricas na passadeira sem saír do mesmo lugar, outros enfiam-se num quarto-de-banho ranhoso, com mijo pelos tornozelos a fumar heroína. Outros ainda, rezam furiosamente; uns ajoelhados simplesmente, outros de cú para o ar, bichanando textos sagrados num zumbido de abelhas laboriosas, em busca da redenção. Diferentes meios para se atingir o mesmo fim.

Lá no fundo, todos sabemos que aquilo com que nos ocupamos, vale pouco ou nada mas preenche-nos. Preenche-nos os dias e a alma. Mas se nos preenchemos com coisas de pouca valia isso significa que nós também não valemos grande coisa. Isso enfurece-nos.

Enfurece-nos ao ponto de desejarmos que o resto da humanidade valha tão pouco quanto nós. É uma inveja ao contrário que desperta impulsos catequistas e nos leva a impor ao outro aquilo que nós (não) somos, nivelando tudo por baixo, multiplicando a mediocridade como modo de vida e paradigma social.

Cocncluindo, estamos a precisar que a humanidade tire umas férias e regresse, por uns tempos, à animalidade primordial. É preciso baralhar tudo e voltar a dar. Que o jogo recomece! Com novas regras, se faz favor.

segunda-feira, junho 15, 2009

Que lugar te faz sentir em casa? (Tertúlia Virtual)


A resposta óbvia é "em casa sinto-me em casa". Pois. Mas a casa é meio camaleão. Muda de cor, muda de forma, até muda de lugar! O ambiente não é sempre o mesmo nesse lugar a que chamo casa. É um lugar vivo. Sinto-me em casa no lugar onde sinto que me amam e onde eu amo as pessoas. Essa é a minha casa. Pode ficar em qualquer lugar.

Banksy no Museu (parte2)



Em complemento da post anterior por indicação do Caçador.
De notar que Banksy manteve o anonimato. Misturado no grupo de encapuzados que montaram a exposição, consegue manter a dúvida sobre a sua identidade. Dizem que nasceu em Bristol, daí esta exposição, mas também isso pode ser uma ilusão ou apenas algo para pôr os ingleses a pensar na vida.

domingo, junho 14, 2009

Banksy no Museu




Banksy é uma referência cultural dos dias de hoje. O artista irreverente cujas imagens invadem o espaço urbano propondo leituras alternativas das coisas (aparentemente) mais evidentes. Um verdeiro artista, na minha forma de imaginar o que é ser um artista. Um fenómeno Pop, um génio um... gajo comum.
Desta vez a notícia é que Banksy tem uma exposição dedicada à sua obra num museu em Bristol, supostamente a sua terra natal.

A dúvida coloca-se; a arte de Banksy cabe dentro de um museu?

A resposta parece óbvia, claro que cabe! Mas acaba por transbordar e ir parar às ruas em volta, "infectando" de conteúdos artísticos as paredes e espaços exteriores.

Banksy acaba sempre por ser mais do que aquilo que parece à primeira vista.

Banksy faz mais sentido no exterior mas não o perde dentro de um Museu.

O Museu é que se transforma noutra coisa ao receber no seu seio a obra de Banksy.

Viva Banksy!

sábado, junho 13, 2009

Onde está a Democracia?


As eleições iranianas para a presidência da República registaram uma taxa de participação de 82%, segundo as notícias. As eleições para o Parlamento Europeu tiveram uma taxa de abstenção que deixa o pessoal a lamentar-se. Mais uma vez. Como de costume. Em Portugal a abstenção situou-se nos 63% (se não estou em erro). Votaram 37% dos eleitores.

Independentemente da taxa de participação, lá, na antiquíssima Pérsia, como cá, na muito velhota Europa, os candidatos conservadores venceram. Esta é a única semelhança. Importa reflectir sobre as taxas de participação popular.

O que fará com que os iranianos passem horas a fio em filas quilométricas "só" para depositarem o papelinho mágico na urna de voto? Talvez lhes faltem distracções apelativas e não tenham nada melhor para fazer. Talvez acreditem que muitos votos fazem a diferença e que têm de ser eles a escolher e não os vizinhos do lado, que se dão ao trabalho de votar. E por cá, o que faz com que a maioria esmagadora dos eleitores não ponha os pés nas assembleias de voto? Talvez estejamos a ficar demasiado preguiçosos, gordos e indiferentes. Ou será que acreditamos que a democracia é um dado adquirido como são a Pepsi-Cola e o hamburger do palhaço. Pensaremos que nada de esquisito nos poderá acontecer, seja de que maneira for? Que o nosso modo de vida se eternizará por qualquer razão pouco evidente?

É verdade que, no Irão, a democraticidade destas eleições é posta em causa, que as coisas não se terão passado com toda a lisura. Mas não consigo esquecer a forma descarada como a União Europeia tratou os eleitores irlandeses que recusaram em referendo democrático o Tratado de Lisboa. Por cá, quando os resultados não estão de acordo com as expectativas das instituições que controlam a União, repete-se a votação. Tantas vezes quantas as necessárias para que o resultado seja aquele que interessa aos governantes? Convém não esquecer a forma como George W. Bush chegou a presidente dos EUA.
Pobre Democracia. Onde anda ela? Começo a pensar que não passa de um fantasma. Um Dom Sabastião velho e perdido para sempre numa tempestade de areia.

quinta-feira, junho 11, 2009

93 milhões de pontapés na crise?


Parece que finalmente vai acabar esta novela merdosa do sai-não-sai de Cristiano Ronaldo do Manchester United. O valor da transferência a pagar pelo Real Madrid será qualquer coisa como 93 milhões de Euros. Porra!!! Tanto dinheiro, benza-me Deus Nosso Senhor!

Para Jorge Valdano, responsável pelo futebol do clube de Madrid, o investimento justifica-se pois haverá um retorno espectacular em termos de contratos publicitários e outro tipo de actividades comerciais relacionadas com a imagem de Cristiano. Pela sua lógica imbatível, Valdano considera que Ronaldo, afinal de contas, até nem é um jogador caro. Antes pelo contrário.

Seja como for lá vai Ronaldo de malas aviadas até Madrid. A dúvida que se coloca é esta: será que ele tem estrutura mental suficiente para aguentar o calor da Ibéria e o salero das espanholas? Sem a figura paternal de Alex Ferguson para lhe amassar o juízo e com Scolari a caminho do distante Uzbequistão, quem irá meter algum tino naquela cabecinha onde o vento assobia cada vez com mais força?

Ronaldo foi considerado o melhor jogador do mundo. Quem o via nos relvados ingleses a brilhar na extraordinária equipa do Man United dificilmente o reconhece debaixo da camisa da selecção nacional portuguesa. As mais recentes exibições por Portugal têm mostrado um jogador agarrado à bola, muito cheio de si e com pouca capacidade de liderança, ele que é o capitão de equipa.

Talvez esteja apenas a fugir à chuvinha de Manchester e procure um lugar ao sol em Espanha. Talvez tudo isto não tenha a mais pequena importância ou, talvez, seja o primeiro sinal de que a tão badalada crise económica é, afinal, mera crise de confiança. Seja lá o que for, não deve ser fácil ser... Cristiano Ronaldo.

quarta-feira, junho 10, 2009

Portugal discursado



Hoje é Dia de Portugal de Camões e das Comunidades Portuguesas. Ok, fixe! É dia de comemorações e medalhas espetadas em fatinhos perfumados. Muito giro. Normalmente não se passa nada de assinalável. Desfilam as forças armadas perante os governantes e botam-se discursos mais chatos que piolho agarrado na virilha. Tudo com uma cara-de-pau que mete medo e convidados com ar de quem comeu mosca tsé-tsé ao pequeno-almoço.

Desta vez, porém, houve um discurso que me prendeu a atenção quando zarpava na TV, de canal em canal, à procura de coisa nenhuma. Foi o discurso de António Barreto que este ano presidiu às ditas comemorações (ver notícia aqui). Pela primeira vez ouvi um discurso objectivo, desassombrado e interventivo, sem medo de chamar as coisas pelos nomes que merecem ser chamadas, mesmo que sejam nomes feios ou pouco bonitos. Já tinha Barreto em alta consideração, a partir de hoje tenho-o na mais alta consideração (esta coisa das escalas de consideração é engraçada), não só porque o homem gosta de jacarandás ou escreve crónicas interessantes no jornal de Domingo.

António Barreto terminou o seu excelente discurso e sentou-se, dando a vez a Cavaco Silva, Presidente da República. Cavaco disse três frases e o encanto do discurso anterior já se tinha transformado na mais banal das pimpineiras. Mudei de canal. Desliguei a TV. Fui pintar.

O discurso está acessível na sua totalidade. Clicar aqui.

segunda-feira, junho 08, 2009

Quem raptou Europa?

O RAPTO DE EUROPA-Riccardo Tommasi Feroni

Foi Zeus! Toda a gente sabe que foi Zeus quem raptou Europa, a formosa princesa fenícia. Disfarçado de touro branco, o deus dos deuses apaixonou-se pela rapariga e acabou por levá-la para Creta onde tiveram vários filhos. Pronto, a história é mais ou menos assim. Temos uma rapariga muito bela mas muito crédula (para não dizer um pouco tosca e algo lúbrica) e um deus que merecia ser padroeiro do Viagra, sempre pronto a fazer alguma tropelia, disfarçando-se de animal para seduzir as suas presas femininas. Nunca percebi muito bem como é que isto funcionava mas um deus é um deus e os seus encantos não terão a ver com a forma que assume.

Ontem foram as eleições para o Parlamento Europeu. Houve surpresas um pouco por toda a parte. Desde o Partido Pirata que, na Suécia, elegeu um deputado adepto da total liberdade de acesso à informação online, até aos partidos de extrema-direita que fizeram eleger representantes seus um pouco por todo o continente, os eleitores guinaram à direita. Os partidos socialistas foram pelo cano e perderam em toda a linha. Em Portugal os partidos mais à esquerda conseguiram um resultado expressivo, contrariando um pouco esta tendência.

Enfim, a Europa está agarrada ao pêlo do touro e vai mar adentro, sabe-se lá para onde. Vai à aventura, vai parir uns quantos filhos. Virá por aí algum Minotauro devorador de virgens e mancebos imberbes?

sábado, junho 06, 2009

Votemos


Amanhã é dia de votação para eleger os deputados ao Parlamento Europeu. Diz-se por aí que a abstenção vai bater o recorde, que o povão não está virado para este género de eleição, etc. e tal. Talvez seja assim. Talvez o povão não esteja virado para nenhum tipo de votação, se calhar o pessoalzinho não quer ter responsabilidades na forma como a política se desenrola. Se não for responsável poderá sempre continuar a dizer mal de tudo e mais alguma coisa.
A campanha não foi grande espingarda. O debate político está pela hora da morte. Mas isso não é desculpa para não ir votar. Da parte que me toca já escolhi os meus candidatos há muito tempo. Não sinto um grande entusiasmo (nem pequeno, confesso) mas sinto a necessidade de cumprir um dever cívico, votando. Sim, eu sei, isto soa um bocado démodé, "o dever de votar" é coisa de bota-de-elástico, mas é assim mesmo e não há volta a dar-lhe.

Amanhã é dia de ir votar. Não fiquem em casa a fazer figura de ursos, não se desculpem com o sol e a praia (se for como hoje vai estar um dia de merda para apanhar sol, bendita chuva), isso é coisa de puto irresponsável. Sei que há putos responsáveis e adultos muito putos e o contrário e vice-versa também. O Parlamento Europeu é um facto e a eleição dos seus deputados outro facto é. Não adianta fazer de conta que não temos nada a ver com isso, porque temos. Temos muito a ver com isso. Temos tudo a ver com isso. Porque a Europa, amigos meus, somos nós, mesmo estando aqui no limite, meio tombados dentro do mar e com um pézinho em África. Vamos votar!

quinta-feira, junho 04, 2009

O deus do rock





Se Elvis foi King, então Angus é God. Tão simples quanto isso.

Ontem fui assistir ao concerto do AC/DC no estádio de Alvalade, em Lisboa. Fui com a minha filha. Separámo-nos à entrada (ela entrou primeiro) e encontrámo-nos à saída com o mesmo sorriso na cara. O concerto tinha sido uma enormidade, uma autêntica celebração do poder da electricidade feita som. E que som!

Não vale a pena estar para aqui a descrever as tropelias de Angus Young agarrado à guitarra ou os truques marados da cenografia (como um comboio a rebentar a parede do palco vindo a toda a brida das profundezas do inferno), o gajo já anda naquilo vi para mais de 30 anos. Toda a gente sabe como ele toca. O que me passou na cabeça, quando estava aos saltos no meio de uma turba meio furiosa a meia-dúzia de metros do palco, foi que aquele homenzinho de aspecto mirrado a desfazer-se em suor, era um deus da electricidade, um deus extraordinariamente poderoso. O seu corpinho feito de palitos e o imaginário dos temas da banda, não encaixam perfeitamente na ideia que eu (não sabia que) fazia do que é um deus e, no entanto, a multidão adorava-o em plena celebração pagã e eu com ela.

Se descontarmos o folclore meio ridículo do merchandising (andavam milhares de pessoas com uns corninhos de plástico electrificados) e as péssimas animações que passaram no écrã (começou logo com uma cena de um comboio, o tal que haveria de entrar pelo palco no meio de uma nuvem de fumo, uma cena de fugir!), tudo o resto foi excelente.

Aquela parte do espectáculo em que Angus Young passa para aí uns 20 minutos a apertar o pescoço da guitarra e esta se desfaz em desculpas e lamentos maravilhosos em bajulação ao seu deus foi uma coisa absolutamente de outro mundo. O mundo meio bacoco do deus da electricidade e do rock, o mundo de Angus (já não tão) Young (mas, ainda assim muito Young). Espectacular!!!

terça-feira, junho 02, 2009

Adultescência


A adolescência é uma coisa maravilhosa!

Ter filhos adolescentes ou contactar com dezenas deles todos os dias, são exercícios que testam com rigor científico a nossa sanidade mental. Estas ex-crianças são, ainda, projectos de adultos e funcionam como espelhos para os mais velhos. Mas são espelhos especiais, mais da família do espelho da bruxa má da Branca de Neve que dos espelhos banais que nos esperam na parede do quarto-de-banho para nos convencerem de que somos aquilo que eles nos mostram.

Um adolescente serve para um adulto compreender que, afinal, ser adulto não é nada de extraordinário. Na verdade, mesmo em adultos, não somos mais que adolescentes com rugas e cabelos brancos. Nós sabemos isso mas os adolescentes estão convencidos de que somos muito diferentes deles e, por isso, incapazes de os compreendermos com um mínimo de justiça. Há também alguns adultos que não compreendem a sua condição de eternos adolescentes o que os torna amargos e irascíveis. Este estado tristonho acontece mais aos adultos que vivem afastados de adolescentes. Afastados em termos físicos ou psíquicos o que, para o caso, é mais ou menos a mesma coisa.

Os adolescentes esperam que os adultos sejam uns autênticos chatos, o que acontece montes de vezes, e os adultos esperam que os adolescentes se comportem como vulcõezinhos de sentimentos contraditórios, o que é perfeitamente normal.

Lá no fundo, bem no fundinho de nós, sabemos perfeitamente que as diferenças não são assim tão grandes. Pronto, está bem, eu sei que a maioria dos adultos tem responsabilidades acrescidas. Um adulto trabalha, ganha dinheiro para manter os adolescentes na sua qualidade de adolescentes por mais tempo e alimentar a sua ilusória sensação de ser adulto. Mas um adolescente também é perfeitamente capaz de manter um emprego (há milhões de adolescentes que trabalham) sem que isso o transforme automaticamente num adulto. E porquê? Porque não nos podemos transformar naquilo que já somos.

Hoje sinto-me adulto, o que quer dizer que me sinto um adolescente. Com rugas e cabelos brancos. Na verdade sinto-me um "adultescente".