sexta-feira, março 13, 2009

Andar aos papéis


No filme de Terry Gilliam, Brazil, há uma personagem interpretada por Robert de Niro, que acaba devorada por um monte de papéis. Esta metáfora de uma voracidade insaciável revelada pela burocracia não é tão exagerada quanto possa parecer, assim, à primeira vista. A burocracia come-nos, de facto.

Come-nos o tempo que temos, come-nos a paciência, beberrica delicadamente a nossa energia e, de sobremesa, despacha-nos a capacidade de trabalho. Quando acaba estamos esgotados. E a burocracia arrota, satisfeita, deixando no ar um leve fedor àquilo que nós somos.

O mais estranho nesta Babel de escritórios sombrios é que somos nós quem a construimos a cada dia que passa. É a nossa incapacidade para lhe resistirmos que permite ao sistema burocrático um crescimento uniformemente acelerado, um universo de perversidade em expansão. O infinito parece ser a única fronteira capaz de o suster e, finalmente, saciar a vontade que tem de tudo encobrir na sua penumbra bafienta.

A forma como hoje dancei atrás de certos papéis, rebuscando montes, pilhas e cadernos de papéis, aparentemente todos iguais, como corei por ignorar a existência de uma certa pasta que era suposto conhecer melhor do que a minha própria família. As vezes que tive de bater à porta, enfiar a cabeça e pedir licença, sorrir embaraçado e, por fim, explodir (um pouquinho) confessando a minha capitulação perante a força desta besta invisível, declarando alto e bom som odesprezo que me merece, toda esta jiga rocambolesca me cansou. Fiquei a sonhar com um desenho que irei fazer e a matutar sobre a melhor estratégia para construir o teste de 2ª feira sobre Impressionismo e Pós-Impressionismo. Depois será necessário introduzir o tema da "Arquitectura do Ferro", construir a biografia de Gustave Eiffel e organizar uma pasta com imagens do seu trabalho.

A burocracia vai-me roendo a alma mas está longe de ma conseguir comer. Um papel timbrado, com três carimbos e duas assinaturas não é uma obra de arte. É um papel.

11 comentários:

roserouge disse...

Tá desvendado o "mistério", já podes ir ver...rsrsrs

Alice Salles disse...

Esse fim falou mais do que tudo, descreveu o âmago de tudo... É só um papel.

Anónimo disse...

Silvares,

burocracia, carimbos, selos e muito papel foi uma herança maldita que os cartórios portugueses nos deixaram. Sofremos disso até hoje!

Silvares disse...

Roserouge, até que nem foi mal!
:-)

Alice, o que alguns papéis nos obrigam a fazer!!!
:-(

Eduardo, é, somos mestres da inutilidade. Não é defeito, é feitio.

Beto Canales disse...

Raul Seixas, um cantor de décadas atrás, escreveu uma letra chamada O Carimbador Maluco. Impagável

Anónimo disse...

Silvares:

É Kafka.

Günther.

peri s.c. disse...

E vocês tem também que "reconhecer firma" nestes papéis ?

Anónimo disse...

Tanta letra, para reconheceres que és desorganizado, ó garino. O pessoal aqui para trás não está bem a ver a cena, mas deixa estar, lá mais para o fim do mês vão aparecer ainda mais, podes já escrever o texto para essa altura. Função Pública é mesmo assim, sem papéis não funciona. Os papéis são a essência do aparelho do estado, porque exigem trabalho em que se gastam os dias e se esquece da finalidade da sua existência. Pensava que já tinhas percebido esta máxima, que é uma das primeiras que se aprende. Sem papéis o gerúndio do verbo fazer acabava. A identidade nacional ficaria sem norte e paralizada. És um perigoso subversivo de falinhas mansas.

Anónimo disse...

Ena pá, por lapso escrevi paralizada em vez de paralisada. Porra, lá vou ter de preencher mais um papel para emendar o erro e pedir desculpas públicas em triplicado: um para o Ministério da Educação, para não me retirar o diploma de Técnico de Tempos Livres Para Filhos de Pais Ocupados; outro para o Ministério das Finanças, para não me confundiram com algum director regional de qualquer coisa e pensarem que estou a aldrabar os vencimentos (logo, os respectivos descontos); outro para a Polícia Informática, para não duvidarem que sou um português pacífico e não um qualquer terrorista infiltrado no país, esperando (lá está o malfadado gerúndio) melhores dias para montar uma patifaria (assim como invadir o Iraque, por exemplo).

Espero que me perdoem, sem sacrifício!

Ogre disse...

Ce tiveces um Magalhãis vireas a toa vida sinpleficada. Sim queu cei doque falo.
Abrassu.

Silvares disse...

LuisM, tás perdoado pá. Aliás, devias ser tu a tomar conta desta embrulhada mas, como não podiam enfiar-te o petisco, sobrou para mim. Uma merda!

Ogre, bô atentar arranjarr un dêçes.