sexta-feira, fevereiro 27, 2009

Poder bruto

A capa da discórdia, terão os polícias lido "pornografia"?


Nestas histórias de censura que temos vindo a observar, não sei se ria, se sorria ou faça cara de cú! O que é comum a estes actos censórios, venham eles de Bruxelas, de Braga, de Torres Vedras ou da Merdaleja, é a desfaçatez com que os agentes do poder exercem o poder que detêm.

Não é só ignorância, é também incúria. Não é só falta de conhecimento, é também falta de capacidade e de qualidade para exercer o poder. A mesma procuradora-adjunta que censurou o carro alegórico no Carnaval de Torres (ler aqui) deu o dito por não dito e voltou atrás. O que ontem era condenável, hoje já o não era. O que mudou para justificar semelhante recuo?Também em Braga a PSP actuou e depois tentou emendar a mão. Primeiro argumentou que confiscara os livros (ler aqui)por recear desacatos na via pública. Ou seja, em vez de meter na ordem os mongas que ameaçavam os vendedores de livros, a polícia resolveu levar os objectos provocatórios para a esquadra. Que merda de forma de manter a ordem e fazer prevalecer a lei! Mais tarde a chefia da PSP acabou por reconhecer que metera a pata na poça, devolvendo os livros e tentando explicar uma coisa que não precisa de ser explicada. A censura não se confunde com nada. A estupidez com quase nada.

É isso que me assusta, ser governado por um bando de estúpidos nem sempre inofensivos que atiram primeiro e perguntam depois, ao morto, quem é ele e como se chama.

quinta-feira, fevereiro 26, 2009

Este país fica onde?


Aqui há uns tempos foi a questão da peça de escultura criada por um tal David Cerny (este artigo, ilustrado por dois vídeos, dá uma ideia interessante do objecto) por ocasião da entrada da República Checa para a presidência da União Europeia. A coisa era feia e corrosiva, portadora de um humor para lá da capacidade de encaixe de muito boa gente e... pimba! Perante os protestos enérgicos da Bulgária (como é que um país, entidade algo indefinível, protesta?) e outros, menos convictos, de mais alguns países novos em folha nesta União, li algures que o artista e a entidade empregadora lá decidiram que o melhor era cobrir a parte "má" da peça com um pano preto (imagem acima). Estamos perante um acto da mais pura e dura das censuras, algo que, imaginava eu, seria absolutamente impensável no espaço da União Europeia. Santa ingenuidade.

Agora tivemos esta situação rocambolesca dos policias que confiscaram meia-dúzia de livros com uma reprodução de "A Origem do Mundo" de Courbet na capa, com o argumento de que pretendiam "apenas" evitar desacatos na via pública. Risível.

Numa ou noutra situação estamos perante sinais nítidos de barbárie cultural. A arte, seja boa ou má ou nem por isso, não é pão para qualquer boca. O pior é quando aqueles que detêm o poder são mais broncos que o minimamente aceitável e desatam a cobrir de vergonha a nossa civilização, obrigando-a a retroceder até à caverna da sua estupidez individual.

É urgente debater publicamente a questão da liberdade de expressão. Se o não fizermos, quando dermos conta, teremos por aí milhares de panos pretos a cobrirem a arte que for "má" e milhões de polícias ignorantes a confiscarem tudo o que lhes pareça confiscável.

quarta-feira, fevereiro 25, 2009

O Leitor


Hoje fui ver este filme. Kate Winslet ganhou o Oscar de melhor actriz graças ao seu desempenho n'O Leitor. Dá que pensar; O Leitor e o facto de o Oscar ter sido atribuído a Kate Winslet.

O filme é perturbante. Tem um ritmo narrativo pouco acelerado (para não dizer lento), as elipses são quase circunferências e os silêncios de algumas personagens em determinadas cenas podem deixar o espectador algo desorientado. Talvez seja mais justo dizer que podem deixar o espectador entregue a si próprio, abandonado na imensidão das suas próprias dúvidas.

O drama que se instala na sala de projecção de O Leitor, envolve toda a gente e aperta um bocadinho a garganta, puxa bastante pela lágrima, enfim, deixa um gajo sem saber muito bem se vale a pena abrir o saco lacrimal e deixar correr. Por acaso não abri o meu, mas houve muita gente que não fez questão de poupar no choro.

Quanto ao Oscar de Winslet... pronto! É bem atribuído mas poderia ter ido parar a outras mãos (estou a lembrar-me do desempenho de Meryl Streep em A Dúvida, por exemplo) e ninguém se escandalizaria. Fica a impressão de que os critérios para a atribuição do homenzinho dourado não são exclusivamente artísticos. Mas seria ingenuidade imensa pensar que assim fosse, que a Academia se regia por rigorosos critérios cinematográficos para premiar os melhores da indústria a cada ano que passa.

Resumindo, um filme a ver por quem não receia a sua própria sensibilidade. Quem tiver medo de se sentir incomodado por possuir um coração demasiado mole e desprotegido perante as grandes revelações da alma é melhor acautelar-se; pode ficar seriamente apaixonado por O Leitor.

terça-feira, fevereiro 24, 2009

Mesmo sendo Carnaval...


A notícia aí está. Um misto de anedota inocente e bocarra de mau gosto, boçal no modo e na intenção, fica na fronteira daquilo que é aceitável em época de Carnaval.

A Polícia de Segurança Pública, vulgo PSP, fez uma apreensão notável. Foi em Braga, terra de arcebispos e padres bombistas elevados a heróis nacionais, cidade onde o Libertino passeou o seu esplendor, Braga "A Idolátrica", foi ali, na impoluta capital do Minho, que a PSP apreendeu meia-dúzia de exemplares de um livro que teria na capa "A Origem do Mundo", pintura de Gustave Courbet, emérito artista francês do século XIX, tido como principal representante da corrente designada por Realismo.

Um bracarense menos crescido, tanto cultural quanto politicamente, exigiu que os exemplares que exibiam a tenebrosa tela na capa, fossem imediatamente retirados do campo de visão público. Perante a recusa dos organizadores do evento, o dito guardião da moral foi-se queixar para a esquadra da polícia. A PSP, lenta ou omissa em tantas ocasiões que por vezes até nos esquecemos que é um corpo policial, viu aqui oportunidade para resgatar a sua imagem e avançou pela Feira do Livro em Saldo, a decorrer na Praça da República até ao próximo dia 8 de Março, para resgatar a decência e a moral católica. Sem tremor nem sombra de dúvida (nem mandato judicial) 3 polícias confiscaram os livros em causa com o argumento de se tratar de pornografia exposta em local público. Ora, todos sabemos que isso não pode ser. Pornografia em quiosques de venda de jornais ainda vá que não vá, mas numa Feira do Livro é perversão!

Mesmo sendo Carnaval esta história é mesmo de mau gosto. Basta um parvalhão qualquer torcer o nariz a uma capa de livro para esse livro ser censurado, retirado de circulação e aqueles que o tentam vender ou comprar serem humilhados publicamente? Que porcaria é esta?

Os exemplos de censura merdosa e mesquinha, originada pela ignorância boçal das autoridades, surgem de vez em quando para nos recordarem que o poder é exercido por seres com muitas limitações, seres exactamente como nós (ou talvez nem tanto) e que precisam, também eles, de ser metidos na ordem. Estes polícias deviam ser castigados pela sua ignorância estupidificante. Como mostram uma falta de cultura que envergonha muitos ignorantes por esse país fora, os polícias envolvidos nesta anedota de mau gosto deveriam ser obrigados a frequentar um curso intensivo de História da Arte do século XIX. Talvez perante uma Vénus de Antonio Canova se sentissem mais sossegados e pudessem compreender a atitude arrasadora de Courbet ao pintar "A Origem do Mundo".
Já depois de ter publicado este post chegaram notícias frescas sobre o desenrolar do "caso". Ler aqui e também aqui para saborear a delícia de tanta bondade revestida com estupidez caramelizada. Um bom-bom de portugalidade pura! Purinha mesmo, como só a Santa Maria.

quinta-feira, fevereiro 19, 2009

Tubarão-palhaço


Hoje li, num artigo de opinião no jornal Público assinado por Helena Matos, a frase que se segue: “O facto de vivermos cada vez mais os avanços da medicina e a hospitalização da morte levam a que cada um de nós se confronte com o temor de ficar a vegetar.” A expressão “hospitalização da morte” é deveras interessante.

A nossa capacidade de aguentar ténues fios de vida, ligando um corpo mais morto que moribundo a uma máquina qualquer, é sinal de desespero perante a incógnita da morte. Há quem fique anos para ali, não sabemos bem onde, algures entre lá e cá, entre o ser vivo e o ciborgue, com um coração que continua a bater sem cérebro desperto que o possa acompanhar. Uma coisa entre um monte de carne, ossos e veias, algo que não sabemos bem se ainda tem por dentro alguma coisa que possamos chamar de alma, uma coisa entre isso e um ser artificial, que consome electricidade em substituição de outras fontes de animação vitais.

Entretanto, algumas páginas antes, sublinha-se com algum espanto uma afirmação de Alan Greenspan (na ilustração), ex-presidente da Reserva Federal norte-americana e ex-sumo-sacerdote da religião antropófaga do capitalismo selvagem. “Em alguns casos, a solução menos má é que o Governo assuma o controlo temporário [de alguns bancos em dificuldades]”. Estarei a ler mal ou isto significa que, para este tubarão envelhecido, é desejável que haja nacionalização da banca em tempos de crise e liberalização quando as vacas engordarem de novo? Significará isto que é necessário recuperar a saúde do sistema capitalista contando com a colaboração das instituições públicas, nacionalizando os bancos durante um certo período de tempo para que, mais tarde e quando tudo estiver de novo nos eixos, se voltem a entregar às sociedades anónimas que nos sugam a vida e a mais-valia do nosso trabalho? Este gajo está xexé?

Resumindo, Greenspan sugere que hospitalizemos a morte do capitalismo selvagem na esperança de que possa regressar à vida, remoçado e pleno de entusiasmo? Os prejuízos são públicos até voltar a haver lucros que sejam entregues ao controlo dos privados?
Sinto-me angustiado. O monstro capitalista está todo entubado, ligado a mil máquinas de reanimação económica e outras tantas que o mantêm em estado vegetativo mas parece piorar a cada dia que passa. Qual a melhor solução? Desligá-lo da corrente? Mantê-lo acamado na esperança que volte a ser (pior) do que era?

Ai, ai, não sou capaz de me decidir. Se da minha opinião pudesse valer a vida ou a morte do mostrengo havia de ganhar uma insónia permanente. Como sou mais um entre milhares de milhões que para aqui andam, de um lado para o outro sem perceber bem o que se passa, o melhor que tenho a fazer é dar cordinha aos sapatos e ir uns dias para longe de tudo isto. O Carnaval aproxima-se. É tempo de virar o mundo às avessas.

terça-feira, fevereiro 17, 2009

O Tempo (perseguição sem fuga)

Na praia, Édouard Manet


«O tempo que, tal com a sociedade, se julgava ser imutável, parece acelerar com a Revolução Industrial e as transformações e progressos que ela propicia. O presente, até então sob o peso de todo o passado, vira-se para o futuro. (...) O tempo da modernidade é o presente, distinto do passado e do futuro e simultaneamente portador dos dois. Esta nova concepção do tempo leva o homem a atribuir um valor específico à época em que vive.
Para o artista trata-se de produzir obras que correspondam à sua época e, jamais, à arte de épocas anteriores, tal como era ensinada na Escola de Belas-Artes, base do academismo.»

in 1848-1905, A Arte no Século XIX de Nicole Tuffelli, Edições 70, páginas 8-9


Nem de propósito! Ao preparar uma aula sobre o Impressionismo deparei com este texto. Se o tivesse encontrado antes do dia 15 certamente o teria postado na Tertúlia Virtual. Como só hoje o tratei, só agora aqui chega. Muito a tempo, convenhamos, mostrando que o tempo não é bem aquilo que pensamos.

O tempo artístico, então, é uma tremenda baralhação. As obras de arte ultrapassam-no com maior ou menor facilidade, confundem-no, brincam com ele tanto quanto o respeitam rigorosamente.

Mas não é disso que estou a falar. Na verdade não estou a escrever sobre nada. Estou apenas a dar notícia de um momento... fora do tempo.

:-)

domingo, fevereiro 15, 2009

Tempo

O Merdanauta
acrílico e esferográfica sobre capa de caderno preto

O tempo é uma mentira que inventámos para preenchermos os dias que vivemos.

Se o tempo existisse de facto não teríamos tempo para mais nada que não fosse ele próprio. O próprio tempo. Seríamos escravos do tempo. Trabalharíamos em função do tempo. A nossa vida haveria de ser regida por medidas de tempo tão específicas que o mais ínfimo dos momentos não nos poderia pertencer, sendo propriedade do tempo.

O tempo é uma mentira que inventámos por não sermos capazes de suportar a verdade. E a verdade é que o tempo não existe!

segunda-feira, fevereiro 09, 2009

Um conto de fadas contemporâneo


"Quem quer ser bilionário" é um conto de fadas, uma história infantil contada a um público heterogéneo. Utilizando uma linguagem narrativa perfeitamente adequada ao mundo mediático que nos submerge, Danny Boyle parece ter encontrado (finalmente?) um forma eficaz de ir ao encontro do grande público.

A forma como a história vai sendo desfiada(em flashback), as cenas cortadas e recortadas em planos curtos e montados em rápida sucessão, à maneira dos vídeo clips, cenas com saturação de cor extrema, a banda sonora poderosa, actores escolhidos com felicidade e acerto (vejam-se as crianças!) tudo isto se conjuga num filme capaz de apaixonar multidões.

O facto de a acção se centrar num programa de TV cujo formato é popular em todo o planeta (toda a gente já viu aquele programa produzido no seu próprio país e na sua língua materna) ajuda a entrar na história com o pé direito e muita segurança. Depois, lá no fundo, narra-se uma aventura sobre o velho mito do amor eterno, com príncipes e princesa, tendo por cenário uma miséria exótica e a possibilidade de ascender na escala social graças a um conjunto de acasos extraordinário. O protagonista acaba por vencer mas apenas por acaso. O amor sincero é protegido pelos deuses? Parece que sim.

sábado, fevereiro 07, 2009

Actores







O filme A Dúvida tem um elenco extraordinário. Não é preciso ser um especialista para o descobrir. É óbvio. Meryl Streep ou Phillip Seymour Hoffman são nomes que de imediato conferem um selo de qualidade ao trabalho que desempenham. E, em A Dúvida, vão alto.
Já as actrizes "secundárias" constituem motivo de espanto. Amy Adams, no papel de jovem freira que se esforça até ao limite por imaginar a realidade, está em muito bom plano; mas Viola Davis, representando a mãe de um jovem aluno do colégio onde se centra a acção do filme, está num plano extraterrestre!

A densidade e intnsidade das representações são o sumo deste filme realizado pelo dramaturgo que escreveu a peça em que se baseia. Talvez por isso, a câmara concentra-se nas faces e nos corpos dos actores, como se o resto fosse (e é) mero acessório. É um filme sobre pessoas que pretende aprofundar a exposição da fragilidade humana quando se trata de construir modelos concretos daquilo que imaginamos ser a realidade. Confuso, não?

Apesar de ser bastante modesto sob o ponto de vista da realização, A Dúvida é daqueles filmes que, quando termina, nos deixa a sensação de ter sido extraordinariamente curto. Na verdade tem 104 minutos mas pareceu ter acabado depressa demais.

sexta-feira, fevereiro 06, 2009

O cupido de Santa Comba



Depois desta série nunca mais poderemos olhar Salazar do mesmo modo. Algumas imagens passam a ter outra dimensão.
De cima para baixo: com Carmona, com aquela rapariguinha e com Franco. Afinal o homem era um cupido de seta sempre pronta!


Ainda não estreou mas já promete ser a maior mistificação dos últimos tempos. "A Vida Secreta de Salazar" está aí a romper e vai oferecer aos olhos de todo um povo estupefacto uma imagem do Botas absolutamente inesperada. Afinal de contas, o mito do homem púdico, temente a Deus e que só se apercebia que tinha uma pixota de cada vez que não se distraía com alguma oração especial quando ia mijar, não passa disso mesmo: um mito.

Desenganem-se os que pensavam que Salazar era um velho carcomido pelo ódio à existência e à liberdade humana. Qual quê! Aquele ser vivo não era nenhuma pileca, antes um verdadeiro garanhão que cobria todas as fêmeas que lhe passassem à distância de um braço.

Veja-se uma frase promocional da coisa: «Esta mini-série de 180 minutos (dividido em dois episódios de 90’) resulta do choque entre a narrativa propagandística, que a francesa Christine Garnier popularizou em livro, e as diferentes tramas amorosas protagonizadas pelas outras mulheres cujos corações foram atingidos pela flecha do Cupido de Santa Comba Dão.» Caramba! Já tinha ouvido chamar muita coisa ao velho das botas, mas "cupido de Santa Comba Dão", essa é muito forte e completamente nova.

Enfim, a coisa promete. Um Salazar cheio de vigor (quem diria?) envolvido com mulheres muito mais belas do que alguma vez ele sonhou que pudessem existir (veja-se aqui, meu deus!!!), que mais nos falta descobrir na constante descoberta que é a vida reescrita dos bandidos deste nosso Portugal? Que surpresas nos reservam ainda os produtores de audiovisual dos canais privados? Cenas escaldantes entre o Cardeal Cerejeira e o seu amigo Cupido de Santa Comba? O Anjo de Portugal a ser sodomizado pelo Demónio feito gente que, ao que parece, foi, afinal, o velho António de Oliveira, enquanto debita um rosário completo? Perante uma surpresa deste calibre tudo podemos esperar. Ou não?

quinta-feira, fevereiro 05, 2009

Interior Luxuoso


Ao saltar para a página do Público online dei de caras com esta notícia. Lux Interior morreu com 62 anos de idade. Não deixa de causar uma certa impressão na boca do estômago o facto de a notícia estar na secção de "cultura" (Ouvi e vi o vídeo de "What's inside a girl?" 3 vezes seguidas só para matar saudades. Saudades mortas.)

Os Cramps foram uma das bandas que me ajudaram a suportar o fim da adolescência sem ser assaltado por uma vontade incontrolável de me atirar abaixo de uma ponte. Sempre que era assaltado por essa fatalidade ouvia uns temazinhos dos Cramps e pronto, voltava tudo ao sossego habitual. Havendo Cramps neste mundo, todos os adolescentes de finais dos anos 70 podiam respirar um pouco mais aliviados.

A música desta banda constituída por horripilantes personagens tem qualquer coisa de hipnótico que nos faz desejar manter os faróis ligados mesmo que estejam a apontar e a iluminar algo que preferíamos não ver ou, pelo menos, ignorar. Uma espécie de alegria de viver ao contrário.

O 100 Cabeças envia condolências a Poison Ivy, viúva de Lux.

A partir de agora resta-nos ouvir o som arrasador dos Cramps e continuar a sorrir e a abanar a cabeça enquanto tentamos segurar os pézinhos que teimam em bater e as pernas que não sossegam de tanto quererem dançar.

terça-feira, fevereiro 03, 2009

Um pensamento que não chega a sê-lo. É envelope.


Parece-me conveniente afastar da cabeceira da cama os fantasmas que sejam da família de outras pessoas. Não estou disposto a deixar-me assombrar por eles. Na maior parte dos casos nem sequer os conheço. Não podem meter-me medo.

Prefiro entreabrir a porta e espreitar os meus próprios fantasmas. Quem sabe, uma noite destas lhes entrego as chaves dos meus sonhos?

segunda-feira, fevereiro 02, 2009

Um filme dos antigos


Milk é um filme que conta uma história (Será isto digno de nota? Faz sentido esta afirmação?). Veloz e construído de forma sólida, conta com a extraordinária interpretação de Sean Penn (Oscar para o melhor actor?).

Sendo um filme biográfico centrado na figura de um activista gay, Milk acaba por constituir um hino à democracia americana. Harvey Milk nunca desiste de fazer valer os direitos da comunidade gay, utilizando todos os meios que a Democracia coloca à sua disposição, até atingir, finalmente, os objectivos a que se propõe.

O registo cinematográfico utilizado por Gus van Sant é escorreito e claro como água. No final sai-se do cinema com a sensação de que há esperança nas virtudes do sistema democrático e que, contra ventos e marés, é possível triunfar sobre as forças obscuras dos fundamentalismos mais empedernidos. Sai-se também com a sensação de que é possível fazer cinema sem grandes efeitos especiais nem explosões nem planos de centésimos de segundo montados uns a seguir aos outros numa sucessão alucinante.
Um bom filme, com um elenco excelente.

Na noite em que assisti à projecção de Milk a lotação da sala estava esgotada. Apesar de ser uma sala pequenina (uma das salas Vip das Amoreiras) é de assinalar este facto.

domingo, fevereiro 01, 2009

No veleiro do 3º andar


Lá fora o temporal desespera. Ele chove, ele faz vento, bate, açoita, geme e grita. Parece capaz de continuar naquilo a noite toda. A vizinha do andar de baixo vem até à minha porta. Não usa a campaínha, bate com os nós dos dedos, a imitar a borrasca, mas com menos vigor, menos ímpeto, outras motivações a fazem assim bater, devagarinho. Que há uma toalha no estendal a esbarrar-lhe na janela da cozinha. Coisa essa que a incomoda. Compreendo. Que a toalha poderá voar para dentro da tempestade e perder-se lá para o meio daquele inferno de ruas encharcadas, levada por um dos pequenos rios que agora correm ladeira abaixo, como diabretes a brilhar sobre o asfalto.. Que está bem, que me desculpe. Vou já resolver isso, boa noite. Olhe que se vai molhar todo, que se há-de fazer (que raio queria ela que eu fizesse?)? Muito obrigada. A vizinha regressa ao seu buraco por baixo da minha toca. Somos muitos, demasiados, apinhados como formigas, como baratas, enfim, apinhados como insectos. As janelonas da marquise estremecem, abanadas pela ventania e picotadas pelas gotas de chuva que o céu atira cá pra baixo como se fossem setas. Que hei-de fazer (que raio queria a vizinha que eu fizesse?)?

Abro a janela. Sou um marinheiro em luta com as velas açoitadas pela tempestade, encarrapitado no mastro grande, a tentar por na ordem panos que esvoaçam encharcados, irritados e enlouquecidos pelo vento. A chuva é fria como o caraças e as peças no estendal estão enroladas. São difíceis de controlar. A luta é intensa. Sinto-me a cavalgar as ondas. Mas estou apenas no 3º andar, a levar com a chuva nas trombas, com o cabelo encharcado e as mangas do casaco molhadas. Não me parece que a toalha citada estivesse sequer perto de bater na janela da senhora mas ela é assim mesmo. Simpática. E preocupa-se comigo (que me ia molhar, pois.) e já não é a 1ª vez que se queixa das toalhas. É para aí a centésima vez. E por muito que me queira imaginar num veleiro em pleno mar alto, por muito que queira brincar um pouco como se tivesse outra vez 10 anos de idade, a verdade é que não consigo. Esta não é brincadeira que me apetecesse brincar. Já não sou capaz de entrar nestes filmes a fingir que a realidade, quando é uma merda, não é a merda que parece.

Quando termino o meu acto heróico estou a dizer mal da vida, sinto a cabeça gelada (espero não ficar doente) e estou perfeitamente ciente dos anos a que por cá ando. Decido descalçar as botas e enfiar os pés numas pantufas. Ao menos isso.