sexta-feira, fevereiro 29, 2008

Sexta-feira

Robinson Crusoé ( link de acesso a E-book com texto integral em inglês http://books.google.pt/books?id=N3j6lAqRmwEC&dq=robinson+cruso%C3%A9&pg=PP1&ots=s_QyOr2ME5&sig=JzPQK5PD8CA4RfR-PpJQTYGcQAc&hl=pt-PT&prev=http://www.google.pt/search?hl=pt-PT&q=robinson+cruso%C3%A9&sa=X&oi=print&ct=title&cad=one-book-with-thumbnail) chamou Sexta-Feira ao Sexta-Feira por se terem encontrado a uma Sexta-Feira. Robinsosn Crusoé teria a capacidade criativa de um armário de cozinha ou encontrou naquela designação uma forma de evitar pensar muito no assunto?
Vincent van Gogh (link de acesso a uma das milhentas páginas sobre o pintor louco http://www.vangoghgallery.com/), um dos mais populares artistas de todos os tempos para os habitantes do momento actual dos últimos anos no mundo ocidental, pintou muitas obras (em muito pouco tempo). Paisagens, retratos, objectos, espaços interiores. Searas, pessoas comuns, quartos e pares de botas. Tinha Vincent a imaginação de um roupeiro com espelho ou encontrou nestas temáticas uma forma de evitar gastar muitas energias a decidir sobre o motivo da sua acção, podendo concentrar-se mais em aspectos técnicos de execução?
Eu próprio tenho andado a pensar que raio hei-de fazer com a minha falta de vontade para desenhar, pintar ou, mais simplesmente, a minha falta de chama criativa que me tem assombrado a existência nestes últimos tempos. Sinto que possuo a imaginação de um aparador em madeira de nogueira ou carvalho.
Dou comigo a pensar que, quando a imaginação se parece mais com algo que literalmente não pode existir porque não existe de facto (não tem corpo, não mede, não se cheira, nem nada dessas coisas) resta-nos sempre a realidade, seja lá isso o que for.
Vai daí tirei a foto acima a uma "jarra" com quatro flores que roubei à vida quando as arranquei de um canteiro na rua numa viagem de regresso da escola para casa.
Não se vê lá muito bem (clicando na imagem já se vê bem melhor) mas o Cristo Rei está lá ao fundo, atrás do telhado à esquerda e, do lado direito, há um avião (da minha varanda vê-se um corredor aéreo de entrada para o aeroporto de Lisboa). Ali em baixo, do lado direito, cortado pelo parapeito onde assenta a "jarra", surge uma personagem em simples silhueta cortada. As nuvens parecem ter sido dispostas cuidadosamente em conjugação com as flores, numa composição pictórica.
Dei por mim a pensar como a criação pode ser acaso e o contrário também é válido, como a criatividade depende tanto de quase nada. Uma foto tirada na varanda, num momento de algum fastio. Sexta-feira.
Isto deixou-me em paz em com o mundo. Com a minha rua, pelo menos.

quinta-feira, fevereiro 28, 2008

Vazio

Talvez as coisas não se tenham passado bem assim mas penso que aquilo aconteceu mesmo. Não tenho a certeza, resta-me uma vaga memória da cor dos seus olhos e ainda sinto aquele cheiro; um leve odor seco,destituído de frescura ou intenção.
O corpo estava ajoelhado, de bruços sobre a cama. Parecia estar apenas encostado.Era difícil calcular-lhe o peso. Estava tudo tão quieto!
Eu não avançava. O outro homem também não. A quietude do local, o silêncio, aquele odor, quase perfume, nada nos instigava a agir. Antes pelo contrário.
Os que ali faltavam tinham ficado no corredor. Adivinhavam o fim que tinha chegado no interior do quarto. Queriam ver o que se passava mas também não queriam.
Uma súbita tristeza cresceu dentro de mim. Uma tristeza dura, a moldar-se-me no peito, como barro, como gesso, a crescer e a ocupar todos os lugares cá dentro, uma alma sólida a querer não existir sem poder evitá-lo.
Olhei o outro homem. Ele já me olhava como se esperasse que fosse eu a tomar a iniciativa de fazer algo. Qualquer coisa. Ele aceitaria o que quer que fosse que eu decidisse fazer naquele preciso momento.
Sem saber como nem porquê avancei um passo em direcção ao corpo inerte.
Toquei-lhe e senti-o rígido. Estátua caída do pedestal da vida. Num primeiro esforço ineficaz tentei virá-lo. Afinal era mais pesado do que parecia. Muito mais.Tinha o peso de estar vazio. Ganhei força e não sei como voltei-o para cima.
Foi então que lhe vi o rosto.
Meu Deus, vi-lhe o rosto.

segunda-feira, fevereiro 25, 2008

Má avaliação

O primeiro-ministro terá afirmado, a propósito da contestação relativamente ao processo de avaliação de desempenho dos professores, que “mais vale uma má avaliação que nenhuma avaliação”. Isto, a ser verdade, mostra bem o espírito da coisa.
Importa sublinhar que o principal motor deste atribulado processo foi a necessidade sentida pelo actual governo de apertar os cordões à bolsa da Educação. Recordemos a congelação das carreiras dos professores por dois anos com o argumento de ser necessário repensar o método de avaliação que permite a progressão entre escalões de remuneração. Segundo a equipa ministerial, e aqui estamos de acordo, o anterior método de avaliação para progressão na carreira docente era altamente injusto e roído pelos mais variados vícios de processo. A mudança de escalão era praticamente automática, dependendo apenas da frequência de acções de formação demasiadas vezes inúteis ou mal orientadas, nas quais os professores acumulavam um certo número de créditos. A isto bastava acrescentar um relatório de autoavaliação do desempenho que o docente apresentava à apreciação de uma comissão nomeada para apreciar os méritos aí expostos e reclamados. Salvo casos raros de incúria e desleixo absoluto, todos os professores viam os seus relatórios avaliados satisfatoriamente, progredindo na carreira em intervalos de tempo regulares. Isto era catastrófico para os cofres do Estado, uma vez que todos os professores integrados na carreira aspiravam a, um dia, chegar ao topo independentemente de terem ou não uma prática profissional condigna e reconhecida pelos seus pares. A presente equipa ministerial declarou este processo uma aberração e jurou meter tudo nos eixos. Os professores, por terem beneficiado deste agradável método de avaliação de desempenho ao longo de anos, foram declarados inimigos da ministra e dos seus dois inefáveis secretários de estado.
Muitos professores estavam de acordo com a ministra; o anterior método de avaliação e progressão na carreira docente padecia de tremenda maleita. Alguns acreditaram que seria tempo de debater com o ministério um novo processo de avaliação, justo e equilibrado, que viesse reconhecer a distinção entre a qualidade do trabalho lectivo dentro das escolas. Ilusão! A ministra chamou a si toda a responsabilidade para propor alterações e introduzir novos paradigmas no dito processo. Mal aconselhada por um grupo de colaboradores desleixados foi acumulando erros sobre erros que nos conduziram à situação actual. A esta sucessão de acontecimentos extraordinários não será alheio o facto de se pretender tapar o sol com a peneira. A motivação de todo este processo é exclusivamente de natureza económica. Os aspectos mais técnicos relacionados com a prática docente ou com o clima de aprendizagem nas escolas por este país adiante são nitidamente secundários. O que importa é poupar uns cobres nos ordenados dos professores. Até acredito que isso seja verdade. O que já não posso aceitar é que em nome desse inconfessado objectivo um ministério pratique os mais impensáveis atropelos aos direitos de toda uma classe profissional.
Para justificar o que afirmo atrás basta ver, por exemplo, como foi que o ministério resolveu a divisão dos professores em titulares e não-titulares. Apenas os professores que se encontrassem nos 8º, 9º e 10º escalões da carreira podiam aspirar ao lugar de professor titular desde que conseguissem um determinado somatório de pontos atribuídos numa escala mais do que discutível. Mas, repare-se, como chegaram esses professores aos escalões que ocupavam quando se candidataram aos lugares que agora ocupam? Beneficiaram do tal nefasto método de progressão na carreira que se pretende agora substituir e, até, moralizar. Então em que é que ficamos?
Não, senhor primeiro-ministro, a um mau processo de avaliação é preferível dar algum tempo até que se possa transformar num bom processo de avaliação antes de optar por avançar com ele. Talvez assim se poupasse a vergonha de ver tribunais pelo país fora a darem razão aos professores que avançaram com providências cautelares contra esta monstruosidade antidemocrática em que se transformou todo o processo, perante a olímpica indiferença da ministra e respectivos secretários de estado que, mais uma vez, ignoram os tribunais e se comportam como déspotas iluminados que se encontrem acima da Lei.
Isto só pode acabar mal.


Carta enviada hoje ao Director do Jornal Público

domingo, fevereiro 24, 2008

Bom Domingo

"A democracia é cada vez mais universal na forma, mas também mais residual no conteúdo. Este "democratismo" empobrecido tem tido como consequência que as eleições se vão tornando sobretudo momentos de rejeição emotiva do que não se quer, mais do que de escolha fundamentada do que se ambiciona."
Fico cá com a sensação de que o problema é duplo. Por um lado temos um sistema democrático vendido e feito refém do grande capital (o selvagem) e, por outro lado, temos uma massa de cidadãos automatizados e meio zombies, que se estão a cagar nas questões básicas do próprio sistema democrático.
Carrilho vem fazer notar como, quando votamos, exercemos muitas vezes o nosso direito mais como forma de expressar uma discordância (contra o poder) do que para afirmar-mos uma concordância (com um projecto de poder submetido a sufrágio). O sistema eleitoral transforma-se num jogo de espelhos, daqueles espelhos deformadores que antigamente abrilhantavam a poeira das festas populares e das feiras de enormidades, e nós deixamo-nos embalar na vertigem do prazer provocado pela imagem deformada. É sempre com algum desconforto que leio estas coisas, escritas por personagens que não chego a perceber se admiro ou deixo de admirar. Carrilho foi um bom Ministro de Cultura... acho eu. Mas foi um péssimo candidato à Câmara de Lisboa, utilizando todo o género de golpes eleitoralistas que, agora, parece querer dizer que despreza. Este homem adora a própria sombra mas não faz mal (que mal poderia fazer ao mundo a simplicidade da situação de existir um homem extremamente vaidoso?).
O diagnóstico acima transcrito e apresentado por Carrilho é acertado. Temos muita forma e pouco conteúdo. A democracia vai alastrando mais é mais como se fosse um vírus, uma doença contagiosa, do que a cura para algumas das maleitas sociais e económicas que diz pretender curar.
É como se, na verdade, a democracia não fosse mais do que uma sombra daquilo que dizemos que ela é (ou, pelo menos, acreditamos que ela é) fazendo com que a nossa vaidade em nós próprios e no nosso sistema político não passe disso mesmo, mera vaidade sem ponta por onde se lhe pegue.
Bom Domingo.

segunda-feira, fevereiro 18, 2008

O melhor dos mundos

Pangloss (...). Provava admiravelmente que não há efeito sem causa e que, neste que é o melhor possível dos mundos, o castelo do senhor barão era o mais belo possível dos castelos e a senhora a melhor das baronesas possíveis.
Está demonstrado, dizia ele, que as coisas não podem ser de outra maneira: pois, como tudo foi feito para um fim, tudo está necessariamente destinado ao melhor fim. Queiram notar que os narizes foram feitos para usar óculos, e por isso nós temos óculos. As pernas foram visivelmente instituídas para as calças, e por isso temos calças. As pedras foram feitas para serem talhadas e edificar castelos, e por isso Monsenhor tem um lindo castelo; o mais considerável barão da província deve ser o mais bem alojado; e, como os porcos foram feitos para serem comidos, nós comemos porco o ano inteiro: por conseguinte, aqueles que asseveravam que tudo está bem disseram uma tolice; deviam era dizer que tudo está o melhor possível.

Excerto de Cândido, de Voltaire retirado de http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/candido.html

Muitas vezes eu penso como o Professor Pangloss. Penso que vivemos no melhor dos mundos em que é possível viver. Mais, vivemos a era do vinho e das rosas, o melhor mundo em que alguém jamais viveu. Estarei a gozar? Estarei simplesmente parvo? Talvez não. E a gozar sei que não estou. De certeza.

Olhando para trás, para aquilo que sabemos da História deste mundo, haverá alguma época, alguma civilização, que tenha alcançado um tão elevado grau civilizacional? Haverá alguma época em que, apesar de todo o sofrimento e desigualdade na distribuição da riqueza produzida, essa distribuição tenha sido mais abrangente e tenha proporcionado bem-estar a um tão grande número de seres humanos? A manutenção da paz dentro das fronteiras do actual Império Europeu (sei que à custa de ir fazer a guerra longe daqui, há preços a pagar, mas já lá vamos) dura desde 1945. Ao que parece a 2ª Guerra deu para perceber que temos mais a ganhar fazendo a paz com os nossos vizinhos do que cobiçar-lhes as riquezas e usar a força.

Apesar de toda a miséria que o nosso modo de vida provoca noutros continentes, quantos de nós estariam dispostos a abdicar do conforto de um apartamento com água corrente e luz eléctrica, de um automóvel movido a gasolina, de um computador pessoal ligado à World Wide Web e alimentos à disposição no supermercado, quantos de nós estariam dispostos a abdicar de tudo isto para permitir que as populações da África subsaariana vivessem melhor, com menos doença, menos guerra e menos miséria? Sejamos sinceros e frios ao olhar para o espelho. Quando depositamos 20€ numa conta de solidariedade para com o povo sudanês ou uma coisa desse género, estamos apenas a fazer uma festinha no nosso ego. Sabemos perfeitamente que esse dinheiro não vai resolver nada, dificilmente chegará ao destino que lhe apregoam e mais depressa servirá para alimentar um funcionário corrupto que regista uma compra de armas como sendo uma compra de farinha para fazer pão. É uma espécie de indulgência do mundo contemporâneo. Mas este é o melhor dos mundos possíveis. Convenhamos que poderia ser muito pior!

Temos uma elevada taxa de desemprego, ganhamos mal e mal podemos garantir o pagamento da renda da casa, das contas correntes, da alimentação e da educação dos nossos rebentos? Coitadinhos de nós! Como será viver no Chade ou em Timor? Eu sei, eu sei: com o mal dos outros podemos nós bem. Mas até que ponto o nosso bem-estar contribui para o mal-estar desses outros? Proudhon (ver http://pt.wikiquote.org/wiki/Pierre-Joseph_Proudhon ) afirmou que a "propriedade é um roubo", para possuirmos algo de bom haverá sempre alguém a quem falta qualquer coisa importante. Para sermos uma sociedade em constante crescimento económico e social...

Não vale a pena alargar-me muito mais nesta espécie de elogio a Pangloss, a personagem do Cândido, nós vivemos no melhor dos mundos de que há memória. Por muito que nos custe admiti-lo ou sequer pensar sobre o assunto. A menos que haja alguma civilização esquecida (o eterno mito da Atlântida) não estou a ver outra que se equipare à actual civilização ocidental.

Mas este paraíso de pacotilha em que vivemos está adoentado. O capitalismo selvagem ameaça décadas de construção laboriosa de uma sociedade democrática apoiada nos princípios sociais-democratas do Estado Providência. Como em todas a histórias que conhecemos, a ganância acaba por consumir os gananciosos e foi nisso que nos tornámos: uns estúpidos gananciosos. E filhos-da-puta.

Mas, mesmo quando este nosso mundo implodir, ele será sempre o melhor possível dos mundos possíveis. Até haver outro melhor.

domingo, fevereiro 17, 2008

Monolugar sujo e sombrio

O filme "There will be blood - Haverá sangue" http://www.paramountvantage.com/blood/ é um objecto pesado e viscoso como uma tonelada de crude. Pode olhar-se para este filme como se fosse um veículo individual, um monolugar ocupado pelo actor mais-que-principal, Daniel Day-Lewis, com o jovem Paul Dano a pedir boleia à beira da estrada. Mas o velho Daniel só sabe acelerar e o bom do Paul fica a olhar para ele na maior parte das cenas que têm em comum. Quando Paul Dano consegue ficar a sós com um grupo de figurantes, cabendo-lhe a responsabilidade de fazer a cena o resultado é muito bom e percebe-se que está ali um actor para a próxima geração de vedetas holiúdescas (apetece-me inventar uma grafia tuga para esta palavra).
O filme conta uma história com várias personagens que gravitam em redor de um prospector de petróleo incompreensivelmente desumano e evidentemente ganancioso protagonizado por Day-Lewis. A fotografia do filme é estranha e desconfortável, em tons de castanho, como se o mundo que retrata fosse mais triste que a tristeza e suportasse uma sujidade impossível de remover. Uma tristeza inumana, um peso brutal e invisível. Sufocante.
Para este ambiente carrancudo muito contribui a banda sonora de Jonny Greenwood, guitarrista dos Radiohead, que constrói um ambiente opressivo através de um som que, para quem não for surdo ou demasiado duro de ouvido, acaba por assumir contornos de personagem secundária, nem sempre discreta (li no jornal que a banda sonora de Greenwood ganhou um prémio no Festival de Cinema de Berlim para a Melhor Contribuição Artística).
A personagem principal, Daniel Plainview, é o protótipo do self-made man, o capitalista impiedoso e obcecado, que constrói o seu universo a pulso e sempre sob a forte probabilidade de um dia haver sangue a manchar-lhe a toalha do pequeno almoço.
Resumindo, um filme com nítidas pretensões a obra de arte mais do que de objecto industrial que, a espaços, alcança o seu objectivo com mestria.

terça-feira, fevereiro 12, 2008

Que bicho é esse?

Na busca de uma ilustração para um post sobre o tema "Democracia" encontrei este sítio http://www.npsnet.com/cdd/home.htm de onde retirei o boneco acima. Neste sítio, um grupo auto intitulado Canadianos pela Democracia Directa reclama o direito dos cidadãos proporem referendos sobre qualquer tipo de questão. Ao longo da página é exposta de forma sucinta e clara aquilo que estes americanos do norte da América entendem por Democracia Directa e quais os mecanismos necessários ao seu funcionamento.
Queria escrever este post na sequência dos comentários que fizeram ao anterior o Olaio e o Eduardo. Na verdade não esperava nem me tinha passado pela cabeça esta "coisa" da Democracia Directa. Agora que acabei de ler o texto que atrás refiro já não sei o que escrever. Queria reflectir sobre o que é a Democracia em termos formais mas as ideias expostas a respeito da Democracia Directa vieram baralhar-me um pouco o espírito. As partidas que o acaso nos prega são extraordinárias!
Apregoam-se as virtudes de um processo aberto (open process) que exige uma participação activa dos cidadãos. A dinamização deste processo é essencial para a aplicação prática de 3 mecanismos: O Veto Popular, em que pelo menos 5% dos cidadãos votantes podem contestar a bondade de uma lei ou de uma orientação política existente e apoiada pelas forças de governação, propondo um referendo; a Iniciativa Popular, em que pelo menos 5% dos cidadãos votantes podem propor às forças de governação a realização de um referendo sobre uma nova lei ou orientação política; a Dupla Maioria que exige mais de 50% dos votos expressos para decidir a orientação geral resultante de um referendo (a proposta canadiana para este mecanismo é mais complexo do que isto, mas, em Portugal, já temos a obrigatoriedade de um referendo precisar de 50% de afluência de votantes às urnas e 50% dos votos expressos para que o seu resultado seja vinculativo).
Resumindo,a proposta deste tipo de Democracia Directa será viável? O que dizer num país onde se recusou a possibilidade de fazer um referendo ao Tratado Europeu com o argumento de que se tratava de uma questão demasiado técnica e complexa? O que dizer da União Europeia que tem o descaramento de cozinhar um Tratado destes nas costas dos cidadãos? O que dizer num país onde os referendos até agora realizados tiveram uma afluência às urnas mínima, próxima do rídiculo? Poderemos nós, em Portugal aspirar a uma Democracia Directa?
Será que a personagem da ilustração tem razão? Limitar-se-à a Democracia Representativa a permitir-nos eleger os nossos ditadores?
Ai caramba, assustei-me com a resposta que me veio de imediato à cabeça!

segunda-feira, fevereiro 11, 2008

A força da palavra

"Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo; Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã..."
Fernando Pessoa

"Uma elite de parasitas das palavras está a destruir paulatinamente o regime."
Francisco Moita Flores, no Correio da Manhã de ontem

Talvez o nosso Fernandinho não estivesse a imaginar um mundo tão cínico como este que vemos medrar aos nossos pés e aos pés dos nossos filhos e netos. Este nosso mundo onde a laboriosa encenação do real ganha força de verdade absoluta e o poder não se conquista, antes se compra, se rouba ou se troca por dá-cá-aquela-palha.

Fernando Pessoa sonhava não conquistar o mundo com a força das palavras que lhe davam forma à visão que dele tinha lá por trás dos oculinhos. Mas poderia ter tentado, se alguma vez tivesse chegado ao dia depois do dia de amanhã...

Actualmente a verdade faz-se nas Agências Noticiosas. Faz-se! Constrói-se, retoca-se. Faz-se verdade mesmo a partir da mentira e vice-versa, para não quebrar a correnteza do pensamento liberal. Terá sido sempre assim? Como era construída e difundida a Verdade antes de existirem as Agências Noticiosas? Vai na volta não existia Verdade nenhuma e existiam muitas verdades, um parodoxo desse género de paradoxos de trazer por casa.

O Moita Flores (rapaz bem mais dentro do assunto que o nosso Fernandinho) fala de uma elite das palavras que estará a usá-las de forma pouco honesta para destruir o regime político e social em que tentamos equilibrar-nos na vertical, apenas sobre os membros inferiores, para nos podermos distinguir do memorável elefante bem como da barata tonta.

Seja como for, ao que parece, as palavras têm uma força demolidora, uma capacidade de moldar a realidade apenas ao alcance de certos artistas do verbo que, utilizada para fins menos saudáveis, põe em risco os próprios fundamentos da nossa sociedade.

Estamos feitos? Não há nada a fazer?

Bom, a menos que nos estejamos a borrifar para o dito regime deveríamos reagir. Ou agir. Um bocadinho. Agir um bocadinho, pelo menos. Ou reagir.

Por outro lado coloca-se sempre a hipótese de não ficarmos particularmente incomodados perante a derrocada do regime de que nos alerta o Sr. Presidente da Câmara de Santarém (que, ao que vejo não pertence à tal elite manipuladora da palavra... como terá ganho as eleições?).
Se a visão do regime a descolar-se todo e a desfazer-se em pedacinhos sem nexo não nos tira o sono então que se lixe. Fazemos como o Pessoa e depois de amanhã damos cabo deles. Mas só depois de amanhã.

domingo, fevereiro 10, 2008

Onde pára a BD?



A (não) publicação de revistas de Banda Desenhada é um dos grandes fiascos culturais com que nos debatemos. Ao longo dos anos ora surgiram ora sumiram os mais variados títulos com vida cada vez mais curta à medida que os anos foram passando. O Tintin, O Mundo de Aventuras, O Falcão, O Jornal do Cuto, foram revistas que me ocuparam o universo mental e moldaram o meu imaginário. Nos anos 70 a TV não oferecia grandes alternativas e o cinema não era capaz de elevar a fasquia da espectacularidade visual por se debater com dificuldades tecnológicas enormes. Era na BD que se encontravam os mais interessantes dos heróis e as mais espampanantes das aventuras.
Mudam-se os tempos e já se sabe, nada fica como dantes. Nos tempos que correm se perguntarmos a 100 crianças na casa dos 11-12 anos que BD gostam de ler as respostas poderão ser estranhas. Raros são os que lêm BD para lá do Tio Patinhas. Astérix é a personagem mais popular e Lucky Luke já é só para os mais intelectuais do grupo. Nem todos relacionam o Homem-Aranha ou o Batman com o suporte revista. É como imaginar um frango real quando só se conhecem os que se compram no supermercado devidamente limpos e tudo o mais, sem cabeça, nem patas, nem unhas, nem bicos, nem aquele aspecto de atrasados mentais. Olhando apenas para o cadáver embalado com celofane é complicado imaginar o animal verdaeiro.
Meio de comunicação de massas por excelência ao longo dos anos 70/80, a BD viu-se ultrapassada pelo cinema e pelas séries televisivas. Aliás, a BD, nomeadamente os Comics americanos, fornecem muitas personagens para os écrans com o sucesso que se conhece.
Mas, apesar de tudo, a BD não morreu, antes pelo contrário. Quer dizer, em Portugal está morta, mais uma vez, mas podemos sempre encontrar publicações espanholas, francesas, inglesas, norte-americanas, etc., isto é, podemos comprar BD em Portugal mas raramente se pode comprar BD em Português. Muito menos BD portuguesa. Enfim, temos a FOX para tirarmos a barriga de misérias e as séries televisivas vieram substituir as colecções de Banda Desenhada.
Não há nada que bata um écran nos dias que correm. Qual será o suporte que há-de destronar o écran? Existirá algum capaz dessa proeza?

sábado, fevereiro 09, 2008

Pois sim, já me tinhas dito!


O que teria pintado Caspar David Friedrich se alguma vez tivesse voado a 10.000 metros de altitude, pairando acima das nuvens nas asas de um avião? E que monstros poderiam ter sido sonhados por Bosch se alguma vez tivesse atirado os olhos para dentro de um microscópio? Como seria o sfumatto de Leonardo se tivesse trabalhado com o Adobe Photoshop e os seus milagrosos botõezinhos? Num mundo saturado de imagens fabricadas, onde sonho e realidade cada vez mais se cansam de ser o que são, resta-nos espaço para criar uma linguagem plástica pertinente e relevante? É a originalidade um valor? Porra, pára lá com as perguntas, ó macaco, que não me deixas estar descansado, sem fazer nada!

sexta-feira, fevereiro 08, 2008

A bandeira

Realmente tenho andado muito cinéfilo nos últimos tempos. Não é por razão nenhuma em particular, não é por nada que não seja apenas mero acaso. Hoje deu-me para ir almoçar este No Vale de Elah. O suplemento do Público trazia uma foto enorme de Tommy Lee Jones a olhar para mim com aquela cara de personagem bíblica, por causa daqueles olhos que não deixam um gajo descansar sem imaginar que fez alguma coisa que não devia, o tipo a olhar assim para fora de uma página de jornal a cores foi como se falasse comigo. A legenda afirma "Este é o maior actor americano" e pronto, deve ter sido isto que me levou a deixar a pasta em casa, dar uma beijoca à minha filha e arrancar de seguida em direcção ao cinema próximo e já só tinha 25 minutos para chegar a horas.
Sessão das 12h 45m não é coisa de multidões nem mesmo em dia de estreia. Éramos 5 espectadores. Sinceramente pensei que poderia assistir sózinho ao filme. Mas não, éramos 5.
O filme, não sendo nada de extraordinário, é um bom filme. Denso, com recursos narrativos variados (se bem que nem sempre muito eficazes na forma como a mensagem vai gotejando cá para fora) e com actores espectaculares, é capaz de prender o espectador do princípio ao fim, quase mesmo até ao finzinho, finzinho! Tommy Lee Jones confirma a sua grandeza (não sei se é o maior mas lá que é grande ninguém poderá duvidar), Susan Sarandon vai surgindo aqui e ali, deixando um rasto de excelência bem marcado em cada uma das suas curtas aparições e Charlize Theron é bonita, já todos sabemos, e pode ser também uma excelente actriz, quem ainda não sabe pode ir experimentar este filme e tirar as suas conclusões.
Enfim, em 5 estrelas merece bem 3. Uma pelo Tommy Lee, outra pela Susan e mais uma pela Cahrlize. Chegam bem. Quanto ao filme, propriamente dito, com outros protagonistas talvez não ultrapassasse uma entediante mediania mas quem fez o casting sabia ao que ia! Em jeito de conclusão sempre vou dizendo que, no cartaz, a bandeira devia ter outro aspecto.
O que raio quero dizer com isto? A resposta está no filme.

quarta-feira, fevereiro 06, 2008

A propósito...

...do post anterior aqui está a gravura inspirada na obra de Pieter Brueghel, o Velho, justamente intitulada "peixes grandes comem peixes pequenos". Este será um antigo provérbio latino muito conhecido e bem elucidativo da clarividência popular (a chapa/matriz da gravura é da autoria de Pieter van der Heyden e publicada por Hyeronimus Cock http://www.metmuseum.org/toah/hd/brue/hod_17.3.859.htm, é datada de 1557 e realizada a partir de um desenho do mestre com uma inscrição que identificava Bosch como sendo o "inventor" da imagem).
Até que ponto o Padre António Vieira conheceu esta imagem ou outra semelhante? Terá tido o seu celebérrimo Sermão de Santo António aos Peixes, proferido na cidade de São Luís do Maranhão, no Brasil, em 1654, uma base visual deste calibre? A hipótese é perfeitamente plausível (não faço a mínima ideia se há qualquer tipo de estudo ou referência a algo do género) uma vez que estas gravuras eram vendidas com bastante sucesso e tinham larga difusão entre os círculos eruditos da Europa. Uma vez que Vieira mantinha contactos com judeus na Holanda nada mais natural que alguém lhe tenha oferecido ou feito chegar às mãos tão eloquente gravura. A grande arte faz-se para os grandes artistas e eles fazem dela algo ainda maior.

Ah, Vieira...

Celebra-se o 4º centenário do nascimento do Padre António Vieira (1608-1697) com a saudade habitual que sentimos perante a grandeza de pensamento de alguém que, sendo português por nascimento, largo ultrapassou a pequenez que normalmente essa condição nos impõe.
Vieira, o grande pensador, o enorme prosador, o "imperador da língua portuguesa" como foi imortalizado pelo imortal Pessoa. Vieira o homem capaz de entrever no presente que viveu um futuro na verdade nunca experimentado. Vieira o profeta.
Inspirado, afirmou no seu mais célebre sermão, o de Santo António aos Peixes, que "Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam 100 pequenos, nem 1000, para um só grande." Resta-nos a consolação de, sendo pequenos, termos a grandeza de Vieira para nos alimentar o espírito enquanto espírito houver que tenha fome.



terça-feira, fevereiro 05, 2008

Ver literatura


Keira Knightley em "Expiação"

O filme "Expiação" http://www.atonementthemovie.co.uk/site/site.html tem uma qualidade específica e muito especial; permite-nos ver literatura. Não li esta obra de Ian McEwan. Desse escritor li apenas e muito recentemente "Na Praia de Chesil" http://www.gradiva.pt/livro.asp?L=50013, livrinho extraordinário que confirmou tudo o que de excelente tinha ouvido dizer a respeito de McEwan. Assim sendo, pelo menos a trama de "Expiação" haveria de ter algo próximo do genial. Ou por aí perto.
De Joe Wright, o realizador, tinha visto "Orgulho e Preconceito" também com Keira Knightley a protagonizar um dos papeis principais, filme que me deixara excelente impressão e que igualmente adapta com eficácia uma obra literária de reconhecidos méritos. Pronto, pronto, eu sei: quem leu o livro acha que o filme não lhe chega aos calcanhares. É sempre assim. Mas um filme é uma adaptação e não consegue competir com a literatura em dimensão poética ou em profundidade de análise psicológica, nem tem que o fazer. Tratando-se de formas de expressão artística diferentes (se bem que complementares em muitos aspectos) o mesmo tema terá de ganhar, obrigatóriamente, aspectos diferentes. É o que acontece, decerto, com este "Expiação".
"Expiação", o filme, tem um ritmo seguro e envolvente, desempenhos com momentos próximos do brilhantismo (Vanessa Redgrave no papel de Briony na 3ª idade é desarmante!) e, o que mais me impressionou, tem momentos de pura literatura. Certas encenações de sentimentos, este ou aquele esgar, a leve hesitação de um gesto que se suspende ou alonga no nosso campo de visão, não sei explicar bem mas, o que é um facto é que Wright consegue transpor para a tela aquilo que, decerto, McEwan descreve no livro com a profundidade e a perspicácia que se lhe reconhecem. Alguns desses momentos seriam o bastante para despertar a curiosidade ao mais recalcitrante dos espectadores. Mas o filme tem mais do que isso. Muito mais.

segunda-feira, fevereiro 04, 2008

Lugar

Um lugar na NET muito bem organizado para quem tenha curiosidade sobre o velho Marcel Duchamp http://www.understandingduchamp.com/ . Simples, directo e visualmente apelativo. Repleto de pequenas surpresas. Fui dar com a entrada para este sítio no blogue Varal de Ideias http://cimitan.blogspot.com/ do incansável Eduardo Lunardelli, sempre pronto a mostrar coisas que possam interessar a quem tenha interesse em interessar-se.

sábado, fevereiro 02, 2008

Um filme estranho e a estranheza dos rótulos

Sweeney Todd, The demon barber of Fleet Street http://www.sweeneytoddmovie.com/ é um filme estrondoso. Tim Burton avança mais uma boa meia-dúzia de passos em direcção à construção da sua própria lenda. Não há outro cineasta como ele nem sequer nenhum que, pelo menos, com ele se assemelhe. A respeito deste musical sanguinolento e romântico até ao quase rebentamento da alma, as críticas têm deixado os próprios críticos atónitos, tão depressa aquelas ultrapassam estes e fica tudo de cara à banda.

Eu, que não costumo ver com bons olhos musicais no cinema, dou o braço a torcer perante este monumental objecto. Tortuoso e estranho, o filme de Burton sugere um ambiente habitado por um conjunto de personagens que misturam o monstruoso no adorável até começar o banho de sangue. A partir daí não há retorno possível. Gore! dizem uns; Gótico! afirmam outros. Seja como for, estes dois rótulos aparecem misturados ou unidos sem grande dificuldade: gore e gótico, como se fossem sinónimos ou, pelo menos, vizinhos no campo da rotulagem contemporânea.

É aqui que entra o pequeno (ou grande?) equívoco do gótico, já de si um erro de classificação desde a primeira hora.

O conceito de gótico, geralmente associado à arte característica de um certo período da Idade Média na Europa, foi criado durante o Renascimento italiano para classificar as grandes catedrais surgidas por terras do Norte europeu. Pode também estar relacionado com a pintura a óleo com foco principal na Flandres e com o designado Estilo Internacional, colorido e luminoso. Preconceituosos e convencidos da superioridade da sua visão, os italianos do "Quattrocento" , queriam com este termo desconsiderar toda a criação não-italiana. Os Godos haviam sido um dos principais povos bárbaros associados à queda do Império Romano, época que os italianos do século XV valorizavam e para qual olhavam saudosos da grandeza que a ela associavam. Daí que o termo gótico tenha sido cunhado com forte carga depreciativa e colado a toda a obra não-italiana. O que é irónico nisto tudo é que as catedrais que chamamos góticas são originárias não da terra dos godos mas da terra dos francos. Alíás, quando surgiram Notre-Dame de Paris e outras catedrais no mesmo estilo, eram conhecidas como "Opus Francisgenum" (perdoem-me se o latinório vai com erros) ou seja, a Obra dos Francos. Por aqui podemos aquilatar do perigo que corremos quando colamos rótulos aos objectos e pretendemos tornar rígida a história dos estilos artísticos.
Seja como for, a Obra dos Franceses caracterizava-se por um conjunto de conquistas técnicas que permitiam uma arquitectura completamente diferente daquela que tinha vingado ao longo da extensa Idade das Trevas que nós associamos ao estilo Românico, pesado e escuro. O Gótico introduzia os enormes janelões com vitrais que permitiram que a ligação entre Deus e a Luz fizesse parte do programa conceptual das catedrais da época.

A pintura Gótica celebra uma progressiva conquista da representação do corpo humano e dos sentimentos das personagens, agora muito mais próximas da teatralidade necessária para veicular uma nova mensagem religiosa um pouco mais centrada na possibilidade redenção das almas pecadoras. O sorriso é introduzido em determinadas figuras, acompanhando gestos mais graciosos, de acordo com a época galante que então se vive nas cortes mais sofisticadas.


Resumindo, aquilo que o renascentistas designaram como gótico pretendendo significar algo desajeitado e não-belo, é afinal um estilo gracioso, luminoso e de um requinte assinalável tanto em termos técnicos quanto formais. Gótico era um termo depreciativo, criado para menosprezar a arte dos povos não-italianos mas acabava por ser apenas tão injusto quanto xenófobo.

Mas como é que um filme negro e sanguinário como Sweeney Todd pode ser associado ao Gótico? O que tem o ambiente obscuro e decadente das ruelas de Londres no século XIX a ver com as catedrais repletas de vitrais do Gótico?


Na verdade o conceito de gótico que hoje é popularmente aceite, está relacionado com a visão Romântica de uma Idade Média idealizada e valorizada em pleno século XIX. Por outro lado, os românticos criam um universo criativo onde a obscuridade interior dos indivíduos encontra a possibilidade de se expressar. Os artistas românticos, pálidos, vestidos de negro e incompreendidos pelo mundo com demasiada frequência, geniais mas tão fora que não se parecem com nada nem ninguém, acabam por se transformar no arquétipo do artista durante o século XX. "Os artistas são todos malucos" é uma expressão comum entre nós e que terá nos escanzelados e alucinados românticos a sua raíz mais profunda.

Toda esta salsada contribui para que nos dias de hoje, "gótico" seja um(a) jovem pálido como a lua, vestido de negro e cuja roupa terá alguma elemento a fazer lembrar o século XIX. Olhos emoldurados com higliner preto, unhas pretas também. Uma mistura de Rei Artur com Jack, o Estripador. Uma coisa cuja expressão máxima será o estranhíssimo Marilyn Manson. Numa versão mais demente (será isso possível?) de Sweeney Todd talvez Manson pudesse aspirar a um papel... como navalha de barba.

sexta-feira, fevereiro 01, 2008

Outra vez Rauschenberg


Robert Rauschenberg (American, b. 1925). Minutiae, 1954. Freestanding combine. 214.6 x 205.7 x 77.4 cm (84 1/2 x 81 x 30 1/2 in.). Private collection, Switzerland.

"(...)o respeito pela identididade de cada um dos elementos intervenientes na sua prática artística, a ausência de dados que sugiram a predominância do gosto ou da personalidade do artista como factores que orientem a construção da obra, uma generosa disponibilidade no que respeita aos materiais a utilizar, a justaposição de elementos díspares, a noção de colaboração mais que de manipulação, a importância do investimento do espectador na experiência das suas obras e a abertura da obra de arte à vida real, na forma de incorporação dos seus objectos quotidianos."

Excerto do texto de Bruno Marchand intitulado "Intervalo lugar comum: A obra de Robert Rauschenberg entre 1949 e 1974" no volume 10 da Colecção de Arte Contemporânea Público/Serralves. Aqui o autor do texto caracteriza a atitude e os objectivos de Rauschenberg no seu processo criativo.

O que me parece possível retirar deste conjunto de sugestões de Marchand para mapear a actividade artística do velho Bob é a sensação de que o artista é como que um casamenteiro discreto, mediando uma possível relação entre o espectador e a obra que lhe é apresentada tendo em vista um possível casamento com felicidade à mistura.
O criador toma uma atitude imparcial, como se o objecto que cria tivesse vida própria, não dependendo da sua vontade tal existência no mundo dos objectos reais. Rauschenberg seria uma espécie de arqueólogo a desenterrar coisas no mundo das ideias, trazendo-as à luz dos nossos dias aqui, no mundo real, dando-lhes um nome, revelando-lhes a forma.
É uma perspectiva curiosa. Mais uma vez se convoca a responsabilidade do espectador no acto de completar o objecto artístico contemporâneo através da sua própria experiência pessoal, estética ou de diferente natureza.
Quem estiver disposto a aceitar esse estatuto de participante activo no fenómeno criativo, investindo o trabalho de olhar inteligentemente as propostas artísticas que lhe são apresentadas, terá dado um passo em direcção à possibilidade de vir um dia a poder desfrutar da Revelação, estado supremo da relação amorosa entre espectador e objecto de arte, espécie de Nirvana com as botas calçadas.
A exposição de Rauschenberg no Porto tem sido apontada como um êxito em termos de número de visitantes. Ao que ouvi dizer estiveram cerca de duas mil pessoas em Serralves no dia da inauguração. Pessoalmente tenho uma tremenda curiosidade em saber o que pensaram essas pessoas ao sairem do Museu. É que a exposição do Bob não é nada fácil de consumir. Não se mastiga com a facilidade de um Big Mac. Aquilo é mais tipo bife da testa, duro de roer como o caraças. Serão assim tantos os que estão dispostos a estragar a dentuça no esforço de mastigar aquela coisa? Temo nunca vir a satisfazer esta minha curiosidade mesquinha mas acho que posso bem conviver com esta dúvida.