domingo, fevereiro 25, 2007

Estranheza

Vi recentemente (em DVD) "O Milagre Segundo Salomé" um curioso filme sobre aparições e outros mistérios. Uma obra cinematográfica limpa, sóbria e equilibrada, com uma fotografia bem conseguida, um grupo de actores em nível de desempenho bastante elevado e um argumento escorreito. Um filme a ver com agrado.
Já o meu avô materno me garantia, há muitos anos, que a aparição da Virgem aos pastorinhos não passaria de um logro. No interior de Portugal em 1917 qualquer coisa que ultrapassasse a vulgaridade da miséria poderia ser tomado como sinal divino uma vez que as histórias de extra-terrestres ainda não seriam do domínio popular, muito menos entre uma população analfabeta e faminta até mesmo de batatas cozidas.
Assim, a dita Virgem, ainda segundo o meu avô, seria uma mulher bem vestida e com os lábios pintados (esse pormenor parecia-me uma coisa estranha no meio da imagem global) ou um padre (um "pedaço-de-asno", expressão muito característica desse avô) escondido atrás de um penedo a assombrar o imaginário dos 3 pastorinhos capazes de engolir o que quer que fosse desde que causasse alguma estranheza extrema.
Como é evidente nunca mais fui capaz de olhar com bons olhos para essa patranha da igreja católica portuguesa que entretanto já deu origem a santos, a uma cidade tenebrosa, uma catedral imensa de betão e milhentas lojas de recuerdos e souvenirs com a Virgem de Fátima à cabeça do merchandising.
Neste filme vi a narrativa inflamada do avô Mário ganhar animação. Uma Salomé, bela como toda a santa de pau pintado, alisada pela lixa de um escultor habilidoso, surge aos pastorinhos como um meteorito disparado do Céu para iluminar os espíritos entrevados.
Um filme belo e cristalino na forma como descreve a pobreza de espíritos simples e bem intencionados em conflito com o incómodo desejo de ser feliz.

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