A desordem do mundo é paralisante. Animado por sentimentos cristãos, gostaria de poder contribuir decisivamente para reparar algumas malfeitorias, corrigir este erro ou aquele, aproximar dali o Paraíso, nem que fosse mero meio milímetro. Mas, népias! Querer parar as injustiças é como esticar as mãos na esperança de com elas estancar a ventania.
Sente-se coisa inútil.
Desanimado (pedindo desculpa a Deus) vira-se para o outro lado e volta a fechar os olhos. O sono cai sobre ele como uma carga da Brigada Ligeira. É, agora, um penedo no silêncio absoluto do pinhal. Coisas informes, nacos de carne sanguinolenta, esvoaçam em redor da uma única flor carnívora, batendo asinhas de colibri disparam pingos de sangue a toda a volta, metralham as paredes.
Sorri no sono.
Lê o jornal no écran do telemóvel, bebe um café (horrível, amarguíssimo) enquanto guarda o pacotinho de açúcar no bolso das calças. Olha sobre o ombro, imagina nazis em todo o lado. Regressa ao écran e já não presta atenção a nada do que lê. As palavras têm forma mas perderam significado. A mente vagabundeia e é assim que abandona o Café da Esquina: pés no chão, cabeça bem no ar. É preciso viver mais aquele dia e a morte não lhe faz falta.
Lá do outro lado do mar morrem pessoas inocentes, homens ímpios comandam as nações. O abismo abre-se como um inferno pior do que este mundo, milhões de seres vivos precipitam-se naquela ravina infinita. Aves, homens, peixes, a catástrofe é indescritível e a morte sempre insaciável. Um evangelho do desespero vai-lhe crescendo dentro da cabeça.
Chegado ao local de trabalho veste a farda, coloca no peito a plaquinha com o nome, olha-se ao espelho e alisa para a nuca os cabelos que lhe restam. Dirige-se ao balcão. Por entre um sorriso elástico que lhe arreganha a taxa solta o seu gritinho de guerra: Bom dia, em que posso ajudar?